para alice: por nomear antiga visão
Em
tudo o que se está vivendo aqui se assemelha à imagem do inferno que um tempo
atrás povoou minha mente: lascívia desenfreada, drogas de péssima qualidade e
ausência total de qualquer presença transcendental. Por trás de toda essa festa
nonsense e interminável cochila uma tristeza metafísica que atingiu o ápice do
seu estado de canseira, de desgosto, de abominável recusa ao mundo asqueroso e
arrogante que essa atmosfera podre foi gestando ao longo dos últimos meses. O
tempo, transformado em poeira e solidão, parece sequer existir – e um longo e
interminável presente domina tudo o que acontece. É uma daquelas épocas em que
a vida escapa inteiramente a nosso controle, em que nossos instintos mais rudes
tomam as rédeas e com um sorriso, a um só tempo sarcástico e irônico, acaricia
e bagunça as crinas daquele cavalo alado que outrora vagabundeou como um santo
na imensidão do cosmos. As peles se roçam no escuro, os beijos se atropelam uns
aos outros, todas as individualidades derretem como um sorvete sob o sol do
sertão. A inclemência se torna lei, o egoísmo rege o destino furioso e converte
o monge em um mais entre todos os anjos decaídos. O som dos tambores não atinge
o coração. A fartura, a festa, o transe permanente: incapazes de oferecer uma
noite de sono tranquila, um sonho autêntico, símbolos vivos. Restou a sede,
zumbis insaciáveis, máquinas de se esfregar... Uma barata caminhando entre
poemas apressadamente rabiscados em papéis jogados ao chão é o resumo, a
síntese, alavanca primordial deste universo que me tragou antes que eu pudesse
retirar do corpo o sal do último naufrágio...
As
ressacas se sucedem de forma tão natural e espontânea como as ondas no oceano.
A culpa omnipresente e escandalosa. O ódio originário, nascido da infância, da
alienação parental prolongada e violenta, da dúvida dilacerante e escabrosa
sobre o peso daquele dedo que puxou o gatilho e mandou meu pai pro outro lado.
A atmosfera de vingança dominando a paisagem. A estupidez e a beleza da guardiã
insistindo em manter os pés sobre a terra, em manter a casa erguida, em
alimentar as raízes a tanto tempo falecidas, em inculcar no horizonte a pintura
fantástica de uma imaginária terra prometida, o coração de jesus sangrando na
sala, as velas acesas no oratório, a vigília permanente, a contenção quase
absoluta do grito e da revolta, as saias das meninas indo pra escola, chupando
picolés debaixo do pé de juazeiro, a visão miraculosa da via láctea se
esparramando sobre o vale, o paredão de calcário e agrotóxico refletindo a luz
da lua cheia, os olhos de alice faiscando e repetindo papai, aqui no ceará a luz nasce das pedras e minhas vísceras
chorando e o excesso de álcool me corroendo e outra festa e outros beijos e
outras esfregações e outras drogas de qualidade duvidosa e uma que outra
saudade do meu campo santo e seus mortos lamentáveis e a estrada e a estrada e
outra vez a estrada e o gavião trazendo algo de serenidade e outra vez o gavião
trazendo algo de sabedoria e ainda uma vez mais o gavião trazendo umas
colheradas de sopa cheias de amor e energia e mais estrada e um céu com cheiro
de chuva e o gosto do mugunzá do cariri e as meninas na praça e a errância do espírito
e o reencontro com os velhos amigos com suas dores com seus clamores com seus
estados alternados de delírio e febre, depressão e dor, exaltação e resignação
e o bafo da onça da morte e a fera do abismo e os verdes abutres e os olhos de
alice e a ardência dos comprimidos esmagados vendidos como se fossem cocaína
rasgando as narinas e as crianças brincando e a sede a sede a sede insaciável formando
um redemoinho insensato e engolindo a todos os que estamos aqui compartilhando
essa época de desespero e futilidade, essa época de seres inúteis lutando por
questões sem nenhuma importância, essa verdadeira idade das trevas, de
calabouços repletos de reticências, de almas áridas, esturricadas e
desertas. A man within, o amor está fora da equação, a man within... a man
within... a man within…
O
clamor medonho do chão convertido em última oração, a angústia abafada no ar, a
memória da clepsidra de vidro, os cabelos da prostituta loira arrastada pelas
ruas da cidade em martírio inigualável, os símbolos indecifráveis da heráldica
arte dos aparatos de ferrar gado, os ruídos das formigas escutados na madrugada
que antecede o inverno, a saudade, a frieza, a crueza de uma filosofia mineral
e toda a crueldade dos gestos que como corolários dela derivam, a mística
selvagem perdida entre a destemperança e as páginas amarelecidas de um tratado
escolástico, o rio sangrando e morrendo todos os dias debaixo dessa ponte
enferrujada e carcomida que os ingleses negaram aos egípcios, o ócio, outra vez
a droga barata, outra vez essa dor que já deixou de ser dor e se tornou memória
da dor, outra vez o gavião nas barrancas da praia do montecristo, alice
sorrindo, abrindo a torneira, correndo pela casa, devorando goiabas, me
beijando me acordando me pedindo um ataque me dizendo papai, obrigada por ir me buscar, cachoeira é linda...
...papai
vamos ver os peixinhos-árvores de santo amaro! Os automóveis da 324
cruzando braçada atrás de braçada cada uma das lágrimas cada uma das viagens
cada uma das desgraceiras que passaram pela minha cabeça naquela br, cada
fragmento do grande sonho que representava a 116 com seus castelos de pedras
defendidos por cangaceiros armados iluminados pelo sentido sacrossanto da
justiça que emana das divindades obscuras arcaicas e enigmáticas do sertão, o
parto de alice, o castelo encurralado por covardes que ensaiaram uma arapuca
sem honra, desprovida de brilho e de glória mais dotada de alta eficácia bélica
e enquanto as balas ricocheteavam nas pedras e M. uivava os uivos de uma gata
maracajá parindo nos defendíamos sem deixar de cuidar que nossas vestimentas de
couro adornado com ossaturas coloridas perdessem a compostura exigida pela
ocasião. A cachaça, servida com moderação, nos mantinha em alerta permanente papai quando eu era bebê eu fazia guga guga
e você me dava banho de chá de folha foram três os feridos na gesta, a
festa se seguiu por vários dias, assamos carne, descansamos às mãos da pólvora,
bebemos todos juntos como se fôramos uma família e era isso que éramos naquele
momento e alice recebeu toda aquela energia e foi demasiadamente feliz por
aqueles dias e nunca permitimos que fossem retiradas todas as marcas daquela
batalha de onde nasceu a vida e em respeito à memória dos inimigos que deram
seu sangue e viram suas vidas escorrerem pro ralo da eternidade durante aquela
batalha dependuramos cinco ou seis dúzias de flores negras no arame farpado da
seca e todos os dias víamos seu murchar ante a rispidez do astro de fogo, até
que um dia acordamos e nos demos conta de que elas haviam virado cinzas
definitivamente, cinzas, como tudo mais nessa vida...
Sua
comida favorita era brócolis. Brócolis puros. Cozidos no vapor. Sem sal. Sem
nada. Você os devorava com as mãos. Empurrava aquelas flores verdes esponjosas
pra dentro da boca sem se preocupar com mais nada. Você atingia o nirvana
comendo brócolis na sua cadeirinha. Você aprendeu a ficar em pé segurando em
uma parede de vidro. Você viveu seus primeiros dois anos numa casa de vidro.
Você ia pra uma escola na roça que era muito legal. Tinha fogão de lenha. Tinha
jardim de grama. Tinha bons amigos que provavelmente nunca voltará a ver. Tinha
vacas nos terrenos vizinhos. Tinha cabras, tinha plantação de milho, tinha
brincadeira de roda, tinha fruta e tinha brócolis. Papai, faz sopa de tomate pra gente?...
Por
onde andará aquela santa de minas gerais que de tanto caminhar trazia os pés
cobertos de chagas e de tanta compaixão que alimentava pela humanidade
carregava dentro das pupilas uma lua triste apregada no topo de uma pirâmide
invertida com uma inscrição enigmática impressa num vestígio do que um dia foi
vermelho sangue? Por onde andará e como se chamará aquela santa dos véus de
andrajos que guiava a legião de moscas, cegos e mendigos pelas ruas de
calçamento da cidade santa onde misteriosamente tudo se metamorfoseava e
ganhava os contornos os relevos os topônimos da geografia da terra mítica dos
semitas? Por onde andarei? Por onde ando? a
man within me persegue e sinto como se me espreitasse em todas as esquinas
desta cidade. A man within de soslaio
com toda sua parafernália de armas e sua cara de quem está o tempo todo
calculando alguma fórmula ou equação que definitivamente vai embaralhar todos
os elementos do jogo criando um caos perfeito absoluto e harmônico embora
inteiramente distorcido. Distopia, estupor, demência generalizada. Os
tentáculos da rede nos envolvendo, retirando de nós o oxigênio, retirando de
nós a rua, retirando de nós a paixão, retirando de nós o cálculo, retirando de
nós a fé, retirando o retirante que é nossa última esperança, transubstanciando
a liberdade em mera palavra e o mundo em um deserto onde só resta uma única
pedra capaz de parir a luz necessária...
Papai você esqueceu a estória do
monstro zack, ele era roxo, ele comeu a doninha, ele comeu o grilo falante! O
grilo falante não! Tou doida! Ele comeu a raposa e a gente furou a barriga dele
com a mão e salvou todos os bichinhos papai, você esqueceu né?
E a capsula de cianureto foi aberta e com os dedos foi massageando os lábios
grossos e fazendo expressões de quem goza, expressões que eu só conhecia de uma
amiga puta que gozava de verdade, uma boa e velha amiga que nunca mais
encontrei, recordo que uma vez estávamos fodendo na noite da praia de Iracema e
como ela me repetia que esses malditos filhos da puta todos pensavam que ela
era uma coitadinha quando na verdade ela só queria foder e foder e foder sem
parar e que isso era seu desejo e seu caminho e que só assim ela conseguia
fazer a mente parar de verdade e então se dava conta de que tudo isso que nós
chamamos de realidade não era nada – e nessa hora eu pensava no livro de areia
de borges – e ela parava de falar e chupava minha pica e repetia no meu ouvido nada é verdadeiro, tudo é permitido e
com suas habilidosas mãos encaixava minha pica dura naquele cuzinho e me
espremia contra a parede e pedia goza dentro de mim, goza dentro de mim, me
fode, goza na minha bunda, come meu rabo seu escroto, você é igual a eles
todos, só te dou de graça por que gosto dessa sua pica, goza... papai, sabia que o basquiat gosta de mim!
Ele gosta muito de mim papai, ele é um dormilón papai...
...a man within…onde
foi que colei aquele pedaço do passado que recortei na madrugada de ontem pra
hoje? E a tesoura, onde deixei? Em qual dessas touceiras reboleis a tesoura
azul? É a tesoura que alice me trouxe de outro planeta. É a tesoura que
usaríamos para abrir a pança de todos os monstros roxos que tornassem a vir
ameaçar os bichinhos da floresta. É a tesoura do ser. É o grande e esperado
sujeito do cut up final. A senhora das sete línguas das sete mãos dos sete
rosários dos sete cílios das sete esperas dos sete ebós dos sete caminhos e das
sete nações que dominam as ruas. Onde enfiei a porra da tesoura? O trono dela
flutuando nas águas desse rio, suas roupas de gueixa incendiando na outra
margem, sua fantasia de vaqueira se esgarçando entre o sem-fim de estrelas
dessa grandiosa e trágica noite recôncava, as bandeirinhas de são João, as
fogueiras de são João, as duas crianças mortas na véspera de são João: minha
aflição cuidando de alice & bernardo e pensando que a poucos metros de nós
duas crianças estavam sendo calcinadas pelo fogo e que seus corpos suas
alegrias suas inteligências suas brincadeiras suas inocências seus delírios
suas imaginações estava virando cinzas e que nem eu nem alice nem bernardo nem
ninguém podia fazer nada quanto a isso e que noutro dia todos teríamos que
seguir e teríamos que comprar alimentos e teríamos que comer que tomar banho
que cagar e que teríamos que voltar a sair de casa e dar bom dia uns aos outros
e cuidar das crianças todas que não morreram e que talvez cheguem a idade
adulta e tenham filhos e estejam cuidando deles quando avistem uma fumaça no
céu de um outro domingo e saibam que aquele incêndio está transformando duas
crianças em cinzas e sem saber eles estarão nos perdoando de uma culpa que
sequer chegamos a ter e talvez isso os permita redimir todas as pessoas do
mundo exceto os políticos os traidores e todos aqueles que carregam porcos no
espírito e talvez seja assim que eles entendam que no meio de tudo ainda
existem algumas maneiras de procurar uma canção e que essa maneira pode ser
semelhante àquele escultor que retirou da pedra tudo que não era cavalo...
...lembra
que a gente foi passear com o basquiat e ele fazia xixi na parede, lembra que o
tio claudio guardava o côcô dele num saquinho, lembra pai?...
cachoeira,
19 de junho de 2016.
nuno g.