sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Catedral em chamas – estado de guerra permanente

para cruz & souza

em cada vértebra em cada osso em cada célula em cada glóbulo
em cada instante percorrido do ventre intoxicado de nicotina que
habitei por nove longos meses
até esse presente de águas paradas, mortas, cheirando a resíduos
de curtume italiano & papelera nacional
todas as selvas com sua saudável barbárie aniquilada
todos os homens de além-mar
todas as violências sugeridas ou executadas
todos os gozos desperdiçados
em cada pelo de minha sobrancelha inexistente
em cada trecho musical da sinfonia que substituiu minha memória roubada
em cada centelha de larva deste vulcão onde oro
em cada litania que proferi aos decaídos
em cada ferida que abri com meu punhal
em cada garganta que sufoquei com meus próprios punhos
em meu coração que ainda bate que ainda grita que ainda sonha
em cada onça em cada criança em cada sorriso
no centro do sexo de cada uma das filhas de hamurabi
no velho casarão, no cume do paredão de pedra, no apartamento-cemitério
em cada gota de neblina que se apresenta nessa atmosfera
a cada golpe que minha língua desferiu contra a mediocridade de alguém
por todos os versos que escrevi para todos e para ninguém
por todos os versos que não cheguei a escrever por não suportar o que traziam
pelos leprosos que comigo atravessaram as madrugadas
por todos os solilóquios que me conduziram nos labirintos da insônia
por cada dia que me foi concedido sobre essa terra povoada de males e fantasmas
por cada pão que me saciou a sede
pelas mãos que acariciaram meus cabelos
pelo vinho que regou minhas febres e norteou minhas alucinações
– mesmo as mais impróprias e abjetas –
por todas as sombras que dançaram ciranda comigo em volta do fogo
pela mulher coberta de algas & sal
que abriu seu corpo entre as falésias
e me afogou no sangue sagrado que de si jorrava
por cada um dos olhos ou dos cílios que mastiguei sem piedade ou compaixão
pelo terror que travou relações de amizade com minha infância
no silencioso sótão hoje em ruínas
pelas línguas que se perderam nas conquistas e que ressuscitam a cada café da manhã
por cada um de meus naufrágios
por todas minhas ilhas
pela mácula imperdoável nos gestos de quem me negou o que me pertencia
pela minha crueldade e minha capacidade de decepar peixes e
deflorar sonhos em botão
por toda a bílis que vomitei nas incontáveis ressacas que me atravessaram
por tudo e por nada
por todos e por ninguém
pela delicadeza e pela brutalidade
pela freira neurótica e por toda a devassidão dos monges em seus delírios de haxixe
arde, hoje, essa estranha e desfigurada catedral em chamas
e todas as confissões e todas as penitências e todos os exorcismos e
todos os malabarismos e tudo o que é fugaz e o que é impróprio e
o que é devoração e o que é céu azul e o que é meio dia e
o que é cicatriz e o que é insolação e
oásis oásis oásis
– como quando chupastes minha pica ao pôr-do-sol no mirante dos traidores –
a jugular aberta – nunca saberei se por um beijo do inimigo ou pela foice impronunciável –
a chuva, as serpentes rastejando, os leprosos, o calor úmido da selva
– ou seria do útero ainda? –
em cada vértebra em cada osso em cada célula em cada glóbulo de meu sangue
essa chuva que amanheceu se sente
com a mesma intensidade que o chicote na carne de um escravo
sendo açoitado na vitrine da mórbida feira onde transeuntes amordaçados
perdem a vida em estúpidas tentativas de preservar
cada reencarnação cada aparição cada grito abafado
– por meios rápidos eficazes e pretensamente seguros –
na solidão e intimidade que reina entre nossos apetrechos de dormir:
onde o sono se confunde irremediavelmente com as cinzas necrosadas
subitamente revolvidas pelo mar de éter em que estamos todos mergulhados

cachoeira, 15 de dezembro de 2017.
nuno g.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Jaguaribe, beira de rio.

para ayla andrade,

Assim tão simples tu definiu. Faz tempo, mas é agora. Tem coisa que não se perde, tem eternidade que não desbota. Alimentar peixes com baião-de-dois, sentir cheiro de verde e lavanda ou simplesmente ler para quem se ama. Tudo tão simples. Prazeres mínimos que só conhecem as almas claras. Como as águas daquele rio onde até hoje se vê tuas pegadas. Lembro que tinha uns caramujos, tinha uns bêbados na outra margem – mas na verdade não tinha nada além do que batizastes marulho, canto de onça antiga: procissão de presságios. Daqui a pouco outra vez vai ser madrugada. Escuto tu lendo henry miller com essa voz tão desapressada. Engraçado pensar que nada se perdeu. O barulho do ventilador lutando em vão contra aquele calorão desmedido. Nossas risadas brincando no casarão. Beira de rio, Jaguaribe encantado. Não importa se era domingo ou sábado. Diferente dos outros passados era tempo que nunca virou nada. Por isso teu corpo ainda traz aquele cheiro. Por isso meu olhar ainda se perde ainda se agiganta ainda vagueia desajeitado pelas margens. Como é difícil se entender em silêncio. Ficar bêbado juntos e juntos saber esperar tranquilamente a ressaca. Tudo mudou e não mudou nada. Cada rio que cruzo é como revisitar aquelas águas. Nelas tua sombra e nas margens teus pés. Prazeres mínimos – saudade boa de saber que ainda tem chuva nos teus olhos. Desaguamos em outros, nos desdobramos de fato. Tua solidão caminhou algumas vezes ao meu lado. Sempre me arde a pele quando olho na parede a inscrição: rua do meu pai. Jardim de flores povoado de cães & gatos: Iggy, basquiat, damas da noite. O paraguassú já me disse muito, hoje não me diz mais nada. Tem rio que é assim, se desfaz, se desmancha, se torna miragem sem asas. (...) tem trégua que sabe à lágrima, fui ali comprar um cigarro e te ouvi dizendo esse cigarro te mata. No caminho vi o rio e ele outra vez não me disse nada. E rio quando perde marulho nem madrugada salva. Aos três de agosto de dois mil e seis te mandei um poema por imail e agora que o releio o entendo. Dizia coisas que só fazem sentido agora. Um cartão de visitas de Alberto da Cunha Melo. Nele hoje tão claro, tua escada para o nada e a distância entre mim e minha morada. Escrever boniteza de madrugada é coisa boa demais. Daqueles prazeres mínimos que se vive à beira dos rios. E de tanto tentar quem sabe um dia a gente aprende. A escrever bem. A amar mais. A deixar pra trás quem não entendeu nada. E de tanto nada entender feriu de deixar cicatriz. Daquelas que não se apagam. Daquelas que como tu diz: servem pra nos lembrar do que não repetir. Exu me ofereceu cocaína: coisas que acontecem quando se está vivendo na encruzilhada. Disse-lhe hoje não muito obrigado e lhe dei dois cigarros: tem coisas que só se pode escrever de cara. Tudo assim tão simples. Como a luz nascendo nas pedras da chapada do apodi: só os olhos de alice vendo. Como benício refazendo a casa verde com massinha de modelar. Tem gente que clareia alma alheia, ainda quando vem turva e salobra, ainda quando parece não se acreditar em mais nada. Revisitar o rio, revisitar a casa. Ouvir tua voz não deixando esquecer que existem outras cicatrizes: as que nos dão vontade de sangrar novamente. É dos prazeres mínimos que tenho saudade também. Da beira de rio ainda mais real por ser imaginária. Das palavras que lançamos aos ventos, que batem nos ouvidos e voltam pro coração. Sempre. Aqui. Nesse não-lugar habitado por rios, bumerangues & fantasmas.

Cachoeira, 11 de maio de 17.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

from the morning

encontrei nick na floresta
ele era só um jovem triste, belo e melancólico
extraindo a alma de um violão
encontrei nick na floresta
e nós subimos uma colina juntos
e sentamos na última pedra do sonho
encontrei nick na floresta
seus olhos irradiavam uma luz estranha
ele sabia que a morte já chegava
e nada mais lhe importava
apenas o seu violão
encontrei nick na floresta
nós subimos uma colina juntos
e sentamos na última pedra do sonho
e ficamos em silêncio
olhando o rebanho de gaviões
remando em direção ao horizonte        
onde já despontava a lua rosa...

nuno g.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

tirania.

A tirania é uma arte difícil.
Delicada.
Abarrotada de sutilezas.
É preciso conservar súditos.
É deles que emanam todas as regalias.
As da mesa.
As da cama.
As simbólicas.
O tirano crê que os súditos o amam.
Ainda quando cria exércitos que o defendam.
O tirano necessita dessa crença para ser o que é.
A raiva, o ressentimento e a crueldade dos súditos.
Não são para o tirano nada além de ingratidão e injustiça.
Injustiça por macularem as regalias que fazem de um tirano um tirano.
Ingratidão por desrespeitarem o dogma de que o tirano é magnânimo.
A tirania é uma arte difícil.
Exige uma imagem pública atualizada permanentemente.
Exige que a distância e o alheamento do outro sejam punidas uma e outra vez.
Como a recordar ao coração do súdito que o fundamento daquela relação.
É o próprio amor que ele projeta no amor-próprio do tirano.
Por isso o mais grave que pode chegar a cometer um súdito.
É assumir que sim já há muito deixou de amar o tirano.
A tirania é uma arte difícil.
Como a pistolagem.
Como a tortura.
Como as artes ornamentais.
O tirano deve possuir cinismo suficiente para exibir-se frio como o gelo.
O tirano deve conhecer todas as técnicas de vampirismo.
Das orientais às ocidentais.
O tirano não é nada mais do que um coração vazio.
Um espírito fútil e frágil que necessita.
Da luz.
Da grana.
Da compaixão.
Que emana dos súditos.
Súditos que ele acredita desesperadamente.
Que por tê-lo amado um dia.
O seguirão amando sempre.
E serão sempre incapazes de pronunciar a palavra não...


nuno g.

sábado, 18 de novembro de 2017

fiorde

a tarde passou sem que eu sentisse fome
e quando o medo lhe deu a mão
eu soube que algo poderia acontecer

o mar, sem pressa, inundou o itambezinho
os rebanhos de pássaros passaram
e a manchinha marrom no seu olho direito foi se tornando mais visível

o sino da capela soou
me despi de qualquer fantasia
e segui suas mãos abrindo o cadeado da alvorada...

nuno g.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

The portrait, por Stanley Kunitz

My mother never forgave my father
for killing himself,
especially at such an awkward time
and in a public park,
that spring
when I was waiting to be born.
She locked his name
in her deepest cabinet
and would not let him out,
though I could hear him thumping.
When I came down from the attic
with the pastel portrait in my hand
of a long-lipped stranger
with a brave moustache
and a deep brown level eyes,
she ripped it into shreds
without a single word
and slapped me hard.
In my sixty-fourth year
I can feel my cheek
still burning.

Stanley Kunitz

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Poética, por pedro tostes

A poesia é mesmo caso sério:
vez por outra vai parar no cemitério.
E sempre volta, como um
zumbi literário.

A poesia brasileira anda broxa,
não mata a cobra,
esconde o pau
e espera ansiosamente pelo
próximo edital.

A poesia brasileira contemporânea
é esquizofônica;
uma hora fala duro,
na outra difícil (e demonstra
pouca propensão a atirar-se
de edifícios).

A poesia brasileira corrente é polida,
faz foto pro cartaz, gosta
de ser notícia no jornal, do caderno
de resenhas, é bonita
limpinha, correta e erra pouco.
Fuma mas não traga,
estupra mas não mata
e tá sempre em cima do muro.

O poeta? Que se foda! Ele que morra duro.


pedro tostes.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Based on a prayer of Rabi’a al-Adawiyya, por Franz Wright

God, if I speak my love to you in fear of hell, incinerate me in it;
if I speak my love to you in hope of heaven, close it in my face.
But if I speak to you simply because you exist, cease
withholding from me your
neverending beauty.

Franz Wright

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

a ciência dos erros exatos

a ciência dos erros exatos
é mais difícil
que escrever teses de doutorado
matemática inverossímil e abstrata
exige perícia com cálculos infinitesimais
& habilidade para remover entulhos e tristezas acumuladas
a ciência dos erros exatos
não se aprende em escola
não se põe à mesa
nem se exibe nas feiras
a ciência dos erros exatos
é como uma sereia
encantadora e assassina
guardando no fundo do mar
os segredos não-piedosos
de um cipó enfeitiçado 

nuno g.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Impressões sobre "corpo nulo"

parece que vejo o velho
mais osso que carne
mirada de quem pastora cabras
voz de feijão de corda debulhado
infiltrando palavrões no mistério

o primeiro poema me levou a nocaute
os que vieram depois soaram a afago
invitação faz tremer até árvores com raízes de pedra
– e o que somos senão árvores com raízes de pedra, ainda que porosas?

constelação é um desafio astrológico que acende a lamparina do desejo
– pena que há tanto perdi o astrolábio
pés ou cavar de abismos me seduziu por inteiro
– se esse corpo fosse de Aquiles esse poema seria seu calcanhar
além da memória não me disse nada
– talvez por que a vida tenha reduzido meu corpo à memória
canção final cutucou a dor de quem também queria poder fingir inteirezas

em tempos de estiagem corpos se revelam:
caóticos amontoados de palavras.
insônia e ressaca se amalgamaram atrás da minha couraça de fumaça
e se fizeram um só poema
seio é um delírio lindo
jardim dos ácidos é uma bela imagem que sintetiza muitas coisas

não sei por que lembrei do corpo magro do velho
nem a razão de teu corpo nulo aparecer como uma espécie de breve e aforismático tratado
sobre a crise hídrica
e a desertificação do sertão

parece que vejo a sombra de um corpo estranho
– e será que existe corpo que não seja origem e destino de algum estranhamento?
regressando da luz à escuridão
mais carne que osso
mão estendida – ou seria língua?
soprando a chance, outra vez, do sonho

além da memória não me disse nada
o resto me semeou deliciosa sensação.



corpo nulo.
sara síntique.
editora substânsia.

nuno g.

sábado, 21 de outubro de 2017

caiçara

Papai, posso molhar o pé?
Claro que sim filha.
Meus tios pescaram aqui.
Eu me banhei aqui.
E quando existia cheia.
As águas dessa lagoa invadiam o cemitério.
E saciavam a sede dos nossos mortos.
Papai, podemos atravessar a ponte?
Claro que sim filha.
Esses que estão aí sentados.
Jogaram bola comigo.
Brincamos de polícia e bandido.
E curtimos as matinês do lua cheia.
Papai, eu quero fazer cocô.
Duas das filhas de Hamurabi esperando clientes à entrada do bar.
Obrigado.
Tia Neuza bebendo água de coco.
Cumprimentando alguns conhecidos de outrora.
Papai, foi nesse mesmo banheiro que eu fiz cocô ano passado né?
Foi sim filha.
Naquele dia que eu e a Débora achamos uns sapinhos...
Uma senhora sentada no banco do outro lado nos olhava.
Entre o encantamento e o inquisitorial.
Como há muito se habituaram a me olhar os daqui.
Papai, posso ficar brincando descalça?
Claro que sim filha.
A senhora seguiu nos olhando.
A lua nasceu.
Vimos o barco que aos fins de semana passeia as pessoas.
Embala seus sonhos na lâmina dessa lagoa.
Singra essas águas desde sempre mescladas às cinzas de nossos mortos.
Papai, entrou um espinho no meu pé.
Senta aqui que eu tiro.
A mulher segue nos olhando.
O pai dela levou um tiro na loja de meu avô.
Dizem que foi acidental.
Aqui tudo é assim: dizem...
O homem que atirou se chamava Ivan.
Foi a primeira vez que ouvi esse nome.
Só anos depois leria os Irmãos Karamázov.
Pronto, o espinho já saiu.
Papai ainda tá doendo e dói muito.
Já vai passar meu amor.
Me dá cavalinho papai?
Claro filha.
Obrigada papai.
De nada meu amor, só me prometa que quando passar seguirá andando descalça...

nuno g.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A casa de meu bisavô.

A casa continua igual.
Parada no mesmo lugar.
Olhando a mesma igreja.
Às vezes parece que corre nela um matemático perdido.
Ou uma assistente social procurando a cura pra rara doença do filho.
A escada continua quase a mesma.
Só modernizaram os três primeiros degraus para enganar os desavisados.
Lá em cima, a sétima da sétima geração de morcegos.
Papai, os morcegos não dormem de dia?
Dormem sim filha, foram nossos ruídos que os despertaram.
O quintal, o sol, a rede.
Tia Neuza extraindo seu sonho e sua metafísica da solidão absoluta.
A calçada, as cadeiras, a pracinha.
O relógio da coluna segue quebrado.
Sim filha, foi nessa pracinha que eu aprendi a andar de bicicleta.
Na bicicleta que o vovô Nuno lhe deu?
Sim filha, na bicicleta que o vovô Nuno me deu antes que o matassem.
O corredor ficou menor.
Os quartos ficaram menores.
A garagem onde eu passava horas com o tio joãozito ficou menor.
Ou será que fui eu que cresci?
Papai, você sonhou com o quê?
Sonhei com o tio joãozito, ele estava feliz, banhando-se no jaguaribe.
Nosso rio secou.
Nossas várzeas viraram criatórios de camarões.
Nossas árvores viraram lenha para fornos de cerâmica.
Nosso barro virou telha, tijolo e cédulas de cem reais.
A casa segue a mesma.
No mesmo lugar.
Exposta ao olhar da igreja.
Às vezes parece que vemos rosinha, a beata, acendendo alguma vela.
Outras vezes é Antônio, o maçom, proferindo alguma heresia.
A casa é feita de cera.
Não há nela artefato que não tenha em sua confecção algo de carnaúba.
Eu também sou feito de cera.
Eu também cheiro à carnaúba.
Papai, lembra que quando eu vi o tijolo de cera pensei que era rapadura?
Lembro.
A praça mudou.
A igreja mudou.
Só a casa permanece a mesma.
E se Maria a ama tanto.
É por também ser feita dessa cera que nem o fogo das tragédias derrete...

nuno g.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

titicaca ou a virgem de copacabana


¿usted es cristiana?
No, soy francesa.
E fomos passear no vale da lua.
Vimos os astros dentro das fissuras abertas no solo.
Mascamos coca.
Nadamos nus com os sapos gigantes do lago sagrado.
E depois de três dias adormecemos na mesma cama.
¿usted es de verdad brasileño?
Sí.
¡yo no pensaba que un brasileño tardaría tres días!
E juntos seguimos a Puno...

terça-feira, 17 de outubro de 2017

constelação

Os suicidas desacreditaram de Pasárgada.
Ou tentaram alcançá-la antes da hora.
Desistiram do mundo que lhes tocava.
Ou ousaram desafiá-lo sem mais.
No gesto extremo.
Reunidas como as duas corujas de Magritte.
A ousadia e a covardia em estado bruto.
O egoísmo e o amor à humanidade em estado pleno.
Vi seu corpo esbagaçado na calçada.
O efeito do impacto era tão duro.
Que sua boca já não alcançava pronunciar palavra.
Apenas balbucios gemidos e outros sons de dor.
Você estava no vale de lágrimas.
Tão mergulhada em sua própria agonia.
Que sequer chegava a reconhecer minha presença no canto da sala.
Eu me mantinha alheio.
E meu alheamento me mantinha vivo.
Uma hora fui convidado a te abraçar.
Te abracei.
Você prefere ter razão ou ter felicidade?
Razão, respondi sem hesitar.
Estava concluída a sessão.


nuno g.

sábado, 14 de outubro de 2017

homem de água ou antigo testamento

Santiago veio aqui.
Inês também.
E Akin.
Os três lhe procuravam.
Você não estava.
Eles se foram e os grilos ficaram.
São muitos.
Acho que foram eles que espantaram a esperança verde da nossa cozinha.
Ou ela morreu.
Ou ela partiu.
Dizem que os grilos trazem sorte.
Dizem que os chineses comem grilos fritos.
Na dúvida comecei a ler um romance oriental.
Ele me trouxe uma tempestade de areia tão fina que parecia grãos de ossos moídos.
Açoitou minha pele.
Me trouxe memórias ruins.
Turvou minha visão.
Mas não apagou o verde que eu trouxe da viagem.
Não dissolveu o sal que veio comigo.
Nem me fez esquecer o sonho em que eu despertava entre afegãos.
Onde é que fica Pasárgada?
Do outro lado da muralha.
Lá eu sou amigo do rei.
Seu nome: Hamurabi.
São suas as moças que acariciam os cabelos dos meus dois demônios.
Onde é que fica a passagem que nos leva ao outro lado da muralha?
Depois da tempestade.
Em Pasárgada deve haver justiça.
Amor sem crueldade, amor sem escrotidão.
Em Pasárgada deve haver justiça.
Será essa a sorte que trazem os grilos?
Tapetes ao chão.
Procissão de zumbis.
Caminhamos todos ao altar onde se venera a justiça.
Rogando por uma paz que não seja submissão.
Amém.

nuno g.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

...

Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia,
cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos
noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue.
Você muda mais uma vez o seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha.
As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se
dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a
tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é
você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe
resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e
ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la
passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não
haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O
que há são apenas grãos de areia finos e brancos como osso moído dançando
vertiginosamente no espaço.

Haruki Murakami

aqui está minha vida, Cecília Meireles

Aqui está minha vida — esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz — esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor — este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança — este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Cecília Meireles

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

vagabundo, por Álvares de Azevedo

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão adoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas carvernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores;
Sou garboso e rapaz...Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismando
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora...

Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo à nossa senhora e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha,
Há de achar-me na Sé, domingo, à missa.

Álvares de Azevedo

domingo, 8 de outubro de 2017

O ÚTERO E O ESPELHO, por clarice lis marcon.

I.

úteros pequenos definhando
em frente ao espelho:
nunca houve um poema
alegre em corpo de mulher
risos que empenham vaidades
suspiram alento no escuro
de onde nascem as irmandades

seco
cai o útero em frente a esquina
mulher que se preze
não se confunde às gôndolas do porto
não sai com nenhum marujo
não bebe pinga nem rum

desço meu último gole
como se fosse esterco
mulheres sós são
sonhos sem telhas

mulher que se preze
adora teto ao invés de festejos
são tempos em que não há
espelhos
(somente poucos)



II.

Porcos e crianças com fome
fazem parte do cenário
e o rio não leva tanto
o quanto se pensa
nenhum poema jamais
leva a água que invade
os poros que não fogem à sua responsabilidade
o rio esteve:
molha a mulher retoma os laços
mulher é um estado do pensamento
é um meio
para Deus fingir para todos que a água é macho

úteros caídos no chão
me vejo no espelho: temo
as vozes que vociferam contra as águas
e que repetem como as fábricas em sinfonia:
não és bela
são seus dedos ensejos pelos seios
todo o leite não basta
nesse mundo vencem apenas
os surdos e aqueles que por paixão
se tornam cegos
como uma cigana
a ver seu destino em três pedidos mal feitos
- não me rendo –



III.

Mulher que preze
anda armada até os dentes
escuto todas as vozes
que falam em meu nome

IV.

úteros caídos no chão e
mãos erguidas para o céu
a palavra retoma seu curso
sua performance nunca será alegre

corre mulher de três tetas!
corre e impeça esse poema de sangrar
diga as amigas
que agora tudo o que molha
secou

sangrando como fêmeas da linguagem
estéreis
putas
rés

úteros que rastejam até o mar
e morrem na praia
quando deixam de sangrar
mulher é fome do que ainda virá
até Deus e os demônios temem se afogar
já não há mais com o que se preocupar
sustentamos insanas
potes de barro maiores que nossos desejos
sonhos que não se
erguem mais
nem tijolo por tijolo
nem pedra sobre pedra
a mulher se contenta;

contorno meus lábios com lápis de olho
e seu sorriso eu o escondo
(era um menino)
Seu reflexo é mais do que peso
o útero e
o espelho
degladeiam-se até a morte
suam até o desespero
me abandonam
como o último homem também o fará
menos as forças que regem o universo

isso nós temos que carregar


clarice lis marcon.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

maturi

Escreveu o próprio testamento e foi viajar.
Deixou o verde do mar entranhar mais dentro do que todas as vezes.
Tão dentro que parecia fora.
Reencontrou uma amiga depois de anos.
Não disse que ela estava igual.
Não disse que ela estava linda.
Não disse nada além de um hola.
Ela estava de passagem.
Ele era demasiado tímido.
Rasgaram com as mãos uma folha seca de cajueiro:
em mil pedaços.
Armaram sem pressa o quebra-cabeças:
enquanto o chá cozinhava
enquanto se acendiam as velas.
Apesar de não ter dito pensou:
¡hermosa!
Estamos todos de passagem.
Nos desfazendo do que não nos pertence.
Não foi a única amiga que reencontrou.
Houve outra.
Que dividiu tantinho da água do seu mar com o rio dele.
E que com a ponta do dedo untou com sal sua língua.
Houve outra.
Que o ensinou sobre como abraçar quando o abraço pode ser o último.
Sobre como abraçar quem há demasiado tempo não se abraçava.
Houve outra que o chamou à calçada
e lhe segredou umas faísquinhas de estrelas provavelmente já mortas.
O tempo não alcançou a chegança das faísquinhas das por nascer.
Houve outra que lhe chamou amigo e lhe disse:
Estamos jovens lindos e felizes.
Houve outra que também estava apressada e se dizia cansada.
Deixou em suas mãos seu filho e foi estirar o espinhaço.
O testamento adquiriu a forma de romance.
Toda forma expressa diretamente contradições insolúveis do cotidiano.
Todo testamento é uma maneira arbitrária de dar cabo das muriçocas infernais.
Se existir outra coisa depois 
já se tratará de outra coisa.
Quem assim o disse trazia olhos e aura de gente renascida.
Uma viagem é só uma viagem e nada mais.
Uma maneira de ser verde.
Uma maneira de ser sal.
Uma maneira de – sem deixar de ser rude – deixar-se afagar.
Uma maneira de – sem deixar de ser dor – tear com precisão e delicadeza a teia da beleza.
Uma maneira de esquecer todas as vezes que a morte lhe alcançou o calcanhar.
Uma maneira de ensinar Maria
a não esquecer de regar as flores
nascidas no mausoléu
(outrora revestido de azulejos azuis)
onde repousam nossos ancestrais.


Os fantasmas devoram maturis em seus aniversários.
Eles sim sabem que todo reencontro é só uma forma da despedida.
E que é necessário celebrar toda e qualquer despedida.

nuno g.