segunda-feira, 31 de julho de 2017

winter song.

a chuva é um dos meus vícios
atirar contra o sol é o gesto mais inútil que se pode cometer
cada dia que passa mais me delicio em não fazer nada
em ficar em casa contando os sonhos perdidos
e tentando transformar em lagarto os utensílios domésticos
a melancolia é outro de meus vícios
não tão adorável quanto a chuva
mas tem lá sua serventia
atirar contra a memória é o segundo gesto mais inútil que se pode cometer
largar os vícios é uma bobagem
a vida não seria nada sem eles
assim como não seria nada sem a chuva ou sem a melancolia

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Metade pássaro, Murilo Mendes.

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

Murilo Mendes.

semblanza de mi abuelo

hoje, ainda mais que sempre, sua voz em minha voz sussurra
sua alegria, em minha garganta, como um gigante azul desperta
suas mãos trêmulas já nas minhas reverberam
seu canto rouco em meus gestos loucos reencarna

hoje, ainda mais que sempre, sei que fui seu último sonho e pesadelo
sua última tempestade e criação
tão bem recordo suas sentenças sobre a morte
seu hálito de amor e cachaça coagulada
sua saudade exposta às vésperas sobre a mesa:
a cidade desaparecendo
as pessoas desaparecendo
os sentidos aturdidos
e o tempo apodrecendo à luz das lamparinas mortas

hoje, ainda mais que sempre, pressinto teu olhar pousando sobre minha filha
teus rancores corroendo a vastidão oferecida
e a desmedida do remorso incauto
abarcando com suas asas torpes
as fronteiras acesas de nossa imensidão

hoje, mais que nunca, o vento me traz tua imagem bíblica
faróis insanos, turbulentos mares
em meu peito segue a arder tua velha insígnia
e como as bestas do zodíaco alquímico
transfiguro-me e me dissolvo
em teu apocalipse: meu gênesis,
meu infeccionado chão.

nuno g.
Valle de bravo, 26 de novembro de 2014.