quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

haiku

estou escrevendo a horas
deixa eu descansar a escuridão dos meus olhos
na luz do teu corpo?

nuno g.

sábado, 27 de janeiro de 2018

samsara

já quebrei a cara
já quebrei o fígado
já quebrei o baço
já tive problemas no estômago
atravessei uma sinusite
e vivi no estrangeiro
já quebrei o pé direito
já quebrei o pé esquerdo
já quebrei o braço
já ingeri substâncias tóxicas
já tomei enteógenos
já perdi bússolas astrolábios & velas
já me desfiz de tudo o que não me interessa
e hoje tudo o que desejo
é voltar ao corpo em que nasci

nuno g.

fragmento de mário faustino

Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos

Mário Faustino

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

heresia

minha vó hoje me gritou
herege, vociferou
só por causa de que eu disse
que Adélia Prado sabia de deus tudo
e São Tomás de Aquino nada

minha vó se irritou deveras
é que ela nunca leu o coração disparado
nem o homem da mão seca
se lesse saberia que Adélia
traz desespero no corpo
vê deus com a carne
e extrai teologia de dor de dente

se algum dia folheasse
os manuscritos de Felipa
ou
quero minha mãe
entenderia que Adélia
cozinha, ama e arruma casa
como quem reza, medita, encarna

Adélia Prado é a sarça ardente do monte Horeb
São Tomás de Aquino é só uma pilha de palavras mofadas
sua Voz roça com viço a pele do mistério:
meu espírito está preso à carne
aceito e confesso o absurdo que me salva
tamanha delicadeza
há de ser mesmo uma heresia...

nuno g.

cosmorama

sobrevoei a noite da cidade
chuva de gols
pracinhas
oxigênio
& as avenidas insondáveis

sobrevoei o tempo dessa fera
minhas pegadas em sua atmosfera parda
chuva de água
assanhando o mormaço
da solidão asfáltica

sobrevoei suas mãos
seu silêncio
seu não servido frio
com carinho
e arroz branco:

distante e precioso afago
tão difícil de engolir
quanto atum em lata
requentado no prato

nuno g.
fortaleza de nossa senhora da assumpção, 20 de janeiro de 2018.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

miração

a flor tinha mil pétalas
mil mulheres negras que nos cobriram com longos véus
e fomos gestando um estranho fogo azul
que ardia sob uma intensa lua rosa
barro do aquiraz
barro do quixeré
barro de russas
reunidos nesta cidade grande
com olhos perdidos & infinita ansiedade
um tanto mais velhos
com mais catarro nos peitos
e uma série de outras questões sem importância
as mulheres negras se retiraram às suas pétalas
a flor foi se fechando
ficamos nós
rapés, tangerinas, risadas
mangas, bananas, abraços
e um desejo insano de devorar uma panelada

nuno g.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Jaguaribe, rio seco.

para s. s.

Não agüentava mais aquele rio seco.
Ainda que sim bonito ver aquele solo esturricado.
Serpente soltando as escamas.
Serpente soltando as plumas.
Aquela piçarra orando ao além por umas gotas de água.
Aquelas onças entoando cânticos de sede.
Aquela clepsidra de vidro feita com ossos de gafanhotos amarronzados e:
Esperanças verdes.
Nuvens acesas.
Do Cariri ao Jaguaribe.
No meio:
O céu azuzim do iguatu ao meio-dia.
Tarde esticada que nem cordel de feira.
Vertigem é o tempo para quem espera.
Horizonte é o que evita a queda.

nuno g.
Fortaleza de nossa senhora da Assumpção, 11 de janeiro de 2018.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Boulevard – belle époque

todo cambia – o inferno tem muitas faces
a poesia é uma broca de diamante perfurando
as camadas as camadas as camadas
entre a realidade e a realidade

todo cambia – infinitos são os sabores contidos numa só lágrima
a poesia é uma broca de diamante perfurando as espessas
camadas espessas camadas espessas camadas
entre a realidade e a realidade

todo cambia – a poesia é o túnel estreito e labiríntico que se segue à avenida iluminada

cachoeira, 15 de dezembro de 2017.
nuno g.