terça-feira, 19 de março de 2024

A morte do xilógrafo & outros sonhos

Subíamos a serra de Guraramiranga

Eu, Claudio e o velho pajé do seminário

Havia muito verde e muita água

Umas poças de argila branca

Conversávamos sobre a morte de Bitú ou de Adriano ou de Walderedo

Amássavamos a argila branca entre as mãos

E seguíamos subindo a serra


Estávamos na Terra do Gelo

Eu, Alice, Larissa e Assucena

O automóvel atolava na neve

E nós ficávamos conversando sobre o nosso medo que as meninas congelassem

Apesar do temor ou talvez por ele

Seguíamos bem


O Mensageiro o enviou

Trouxe uma tapioca do Aquiraz

Duas mudas de lírios

E um exemplar digital do segredo da flor de ouro debaixo do sovaco

A terça-feira amanheceu alaranjada


nuno g.

Toróró, 18/19 de março de 2024.


domingo, 17 de março de 2024

Uma vela para minha vó

 para Maria Zilá Lima Gonçalves


minhas mãos

trêmulas desde antes da criação do mundo

úmidas como úmida a madrugada de minha infância

te ofertam essas duas flores encarnadas como carvão em brasa


minhas mãos

unhas sempre ruídas 

palmas riscadas por pequenos relâmpagos

te apresentam essas duas flores que a seu pedido foram nomeadas marias


minhas filhas

seus nomes são memória de que a carne é estremecimento e devoção

seus nomes são memória de que ainda em sonhos sua bisavó seguia em oração

seus nomes são memória que uma serpente rasteja ainda no chão de meu coração


minha vó

o caminho da novena era mais estreito e comprido que eu imaginava

o caminho da novena era mais cheio de curvas e insensatezes que meus delírios

o caminho da novena, minha eterna febre enlaçada em suas rugosas mãos de serenidade


a paz está sempre em algum lugar onde nunca se chega

a paz está sempre fora do alcance das mãos

a paz é um pássaro do passado que os ornitólogos nomearam amanhã


nuno g.

Toróró, 17 de março de 2023.

quarta-feira, 13 de março de 2024

oração ao rés do chão.

 ao Senhor dos Cemitérios,

aos Erês que O acompanham,


Assucena brincando na casa da árvore.

As bananeiras, o abacateiro e a mangueira.

Do outro lado da cerca, a árvore das lagartas cortada por ordem do Almirante.

A terra chora sempre que uma árvore é cortada.

Larissa sobe os degraus com alegria.

Vós que aqui entrais, abandonai todos os medos.

Os fogos amanhecem a cidade heróica.

Com suas ruínas exuberantes.

E as cicatrizes do desleixo português por todos os cantos.

Com seus mistérios e mistérios e mistérios.

Assucena brincando na casa da árvore.

Vós que aqui entrais, abandonai todos os medos.

Vaga recordação de um sonho em que Paçoca vomitava borboletas amarelas.

Presságio emoldurado à madeira.

O canto de Alice cruzando o horizonte como um gavião.

Capim-santo. Sorriso no rosto de Lari.

Take it easy my sister Lari.

A terra sorri sempre que se semeia uma árvore.

Yãkoana, Yagé e o caminho dos Sonhos Lúcidos.

Antes do despertar é necessário atravessar muitas vezes o mesmo lugar.

Antes de seguir adiante é necessário revisitar muitas vezes o mesmo chão.

Antes de abandonar todos os medos é necesário sonhar outra vez os sonhos de antes.

Do outro lado da serra, sorri aquele que não ouso pronunciar o nome.


nuno g.

Toróró, 13 de março de 2024. 

terça-feira, 12 de março de 2024

da ponta do iceberg ao coração das águas

Assucena me despertou e meu sonho se esvaiu ao entreabrir dos olhos.

As asas da Esperança sempre me roçando suavemente o corpo.

As exigências do destino. As obrigações do karma. 

A amorosa luz de seguir caminhando entre a resignação e a revolta.

Alice tão longe e tão perto. As cobranças e as encruzilhadas.

Dentro de mim as camadas e camadas de cinzas e o fogo de Tempo.

E a árvore de Tempo. E as sementes de Tempo.

E a boca faminta da Morte ao calcanhar.

Já não há mais dúvidas:

pertenço a uma geração que legará um mundo pior que o herdado.

Ainda nisto encontrar uma pedra ou nuvem para firmar a delicadeza.

Aprender com algum inseto sobre essa habilidade da natureza.

Que destrói o que lhe serve de insrumento à materialização de algo.

Hoje é terça e terça nunca é um dia qualquer desde que escutei a voz do silêncio.

Povo das águas - recebei entre seus fios de cabelos o rogo dos povos de Ar.

O cansaço se avoluma sobre a montanha de cansaços.

Certa ternura se agiganta no redemoinho de tristezas que preenche a tarde.

Ouço o eco de sonoridades muito antigas.

Caminho por paisagens que já não existem mais.

E me agarro com força ao porvir.

Já não há mais dúvidas:

confiar na áridez e desaprender tudo que nos ensinaram.

Pouco convém determinadas insistências.

Existem respostas e medicamentos que se resumem a prolongar sofrimentos.

A sobrevivência só guarda serventia quando tática.

Sábado entregarei minhas últimas arrogâncias e o que restou da verdade.

Depois de amanhã terei atravessado mais uma quaresma.

Entre mel, gafanhotos e sangue.

Jordânia significa descendência.

Ou o rio onde os órfãos podem reconhecer seus antepassados.

Depois da quaresma terei me atravessado mais uma vez.

Sem ter me tornado um com o abismo que me olha desde antes de meu nascer.

Sem ter me enforcado com a corda que ante meus olhos propõe: desata-me.

Depois de amanhã a quaresma terá me atravessado mais uma vez.

Descêndencia significa rio que corre em direção contrária.

Ou oceano que engole praias e montanhas.

Assucena me despertou e todo o sonho se dissolveu.

Restou apenas a bonita imagem de Paçoca, a cadela, 

devorando borboletas amarelas no alpendre da casa do Almirante.


nuno g.

Toróró, 12 de março de 2024.

sexta-feira, 8 de março de 2024

haiku

a vaca mugiu no pasto do Lio

uma borboleta pousou sobre uma flor

um arco-irís serpenteou o céu


nuno g.

toróró, 08 de março de 2024.

sexta-feira, 1 de março de 2024

O cobrador e a encruzilhada.

Ele sempre vem.

Sorrateiro. Disfarçado. Artimanhoso e corroído.

Ele sempre vem e cobra.

Eu só peço a meu pai: gira-me, uma vez mais e sempre.

Deixa Ele falar. Deixa passar. Deixa o Azul sombrear seus golpes.

Eu só peço a meu pai: gira-me e conserva minha devoção.

Ele sempre vem e cobra.

Ainda depois da dívida ele olha e espuma.

Eu só peço a meu pai: gira-me e me conserva.

Balança. Balança. E balança uma vez mais.

E sempre.

Ele julga e passa. Ele fere e segue. Ele abre a janela esquerda e

Eles vêm em socorro.

Estendem a mão, sorriem e dizem sim.

Eles sempre vêm.

Giram-me e cuidam. Giram-me e guardam. Giram-me e abrigam.

O Azul soterra os golpes.

O Amarelo apascenta o ódio que O move.

Eles vêm da esquerda e me giram.

A balança do julgamento.

O balanço das águas do mar.

Firmeza. Lucidez. E a certeza de que por trás Dele existem coisas que não podem ser ditas.

O disfarce não suporta a alegria.

Artimanhoso e corroído ele recua ante Os que fazem a ronda.

Ante Os que seguem de guarda.

Não existe pureza sem mácula.

Só a da Rainha Soberana que Reina na imensidão da Floresta.

Não existe mácula sem pureza.

Só a do cobrador, cego em seu trono de fezes e morte.

Eu só peço à minha mãe: gira-me e guia.

Onde eu for escuro seja lua cheia.

E não permita esquecer que no princípio tudo era firmeza, disciplina e alegria.

E no final também.

O enforcado, o julgamento e o Archanjo.

Aos pés da Rainha Soberana da Floresta.

Eu só peço à minha mãe: gira-me e não permita o esquecimento.

Eu só peço à minha mãe: seja a lua cheia que me guia.

A estrela onde ancoro meus pensamentos.

A vibração da firmeza com que mais de uma vez atravessei os caminhos do inferno.

E este fio de luz que sustenta a pulsação de meu coração.

Amém.

nuno g.
Toróró, 13/12/21

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O arco, a serpente e a luz que atravessou a pedra II

Daqui a pouco o dia vai querer raiar
Luis Queiroga & Pedro Luis


A lua estava cheia, mas haviam muitas nuvens no céu.
Papai, a Sussu nunca vai conhecer o tio Edson e a tia Tânia!
O caminho que caminho tantos caminharam que quase não escuto a solidão.
Havia uma serpente no céu. Uma serpente e muitas nuvens.
Certa alegria que é irmã gêmea da resignação.
Mel e escuridão: escuridão e mel.
Como num romance russo do século XIX.
Ou como quando um cão doente se aproxima de um afago.
E a memória das mãos roxas e delicadas que nos criaram com a lama do mangue.
Íshvara pranidhana - Assucena desperta.
Íshvara pranidhana - Alice desperta.
Íshvara pranidhana - o ferimento no olho do Come-e-Dorme começa a cicatrizar.
A lua estava cheia e oculta entre as nuvens de chuva.
As águas chegaram sobre nós. As águas e as escamas da Serpente.
As águas e as lágrimas da vida toda.
Papai, a Sussu nunca vai conhecer o tio Edson e a tia Tânia!
Certa alegria que é irmã gêmea da poesia.
Mel e resignação: escuridão e mel.
O caminho que caminho tantos caminharam que quase escuto a solidão de meus passos.
Como em qualquer romance russo do século XIX.
Apesar do genocídio em Gaza - ou por cada criança morta ali.
Apesar dos fascistas desta terra mergulhados em seus delírios de tristeza e guerra.
Ou, principalmente, pela existência deles.
Como num poema cearense sobre a guerra dos bárbaros.
Sobre colonizadores matando tapuias.
Sobre uma cabeça de touro enterrada sob a igreja da Virgem da Conceição na cidade do Icó.
Senhora da Lama - não esquecei de nós que trazemos as marcas de vossas mãos nos corpos.
Caçador - em tua flecha nossos sonhos.
Caçador - em tua flecha nossa porteira de fogo.
Caçador - em tua flecha nosso caminho de cinzas & cinzas & redenção.
Papai, a Sussu nunca vai conhecer o tio Edson e a tia Tânia!
Senhora dos Ventos - varre, sopra, espanta, aboia.
Haviam muitas nuvens no céu, mas a lua estava cheia.
Íshvara pranidhana - a Serpente desperta, se faz luz e geologia das profundezas da terra.
Certa alegria que é irmã gêmea da guerra.
Ruge a fera. Ruge a sombra.
Ruge o sino assombroso do campanário.
Como em toda a poesia russa do século XIX.
Como em toda a filosofia de Søren Kierkegaard.
Íshvara pranidhana - Bessen desperta.

nuno g.
Toróró, 28 de fevereiro de 2024.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O arco, a serpente e a luz que atravessou a pedra

Se soubesse de onde eu vim, não me sorria

(...)

Agora que sabe, tem medo de mim

Mas no seu lugar, eu também teria

Mc Tha & Jaloo

A verdade nos lábios e a espada afiada cortando as espumas do ar.

Demasiada neblina ao amanhecer.

No rosto de Claudinha a violência que se confunde com a esperança.

A doce verdade nos lábios e o que é justo aqui: gritando e gemendo neste vale de lágrimas.

Come-e-Dorme com grave ferimento no olho.

Lari pinga o colírio e reza.

Que o vento leve hoje todo o ontem e algo do amanhã.

A verdade nos lábios e a espada afiada cortando as espumas do mar.

Na montanha mais alta a morte e os vaga-lumes dançam e brincam com a neve.

Tempo trabalha, corta a carne e as artérias de um corpo que grita e geme.

A voz de Milton inunda a casa.

Assucena quase chora.

Luís semeia a lua amarela e sorridente.

Que o vento corra daqui esse sentimento ruim e sádico.

Que o vento corra daqui essa insanidade masoquista.

Que o vento traga outra vez o sol, a lua e as estrelas.

Tudo cheira à água de eucalipto.

Na montanha mais alta me inclino ao recordar tia Tânia.

Sua alegria, sua energia e seu amor ao dizer à Alice:

A tia vai ficar boa pra brincar com você.

Bastou isso para fixar agradável memória entre pontes e pontes.

E águas de rios correndo entre prédios e prédios e teias de asfalto.

A verdade nos lábios e as saudáveis maneiras de machucar alguém.

Havia muitas cercas de arame farpado.

Mas a morte e os vaga-lumes sempre terminam por cruzar qualquer cerca.

Os olhos de tia Tânia nos olhos de Alice.

Os olhos de tia Helma nos olhos de Alice.

A doce e violenta verdade nos lábios.

A doce e delicada e violenta verdade nos lábios.

O som das tanajuras caindo dos céus.

O som dos passos desta senhora que chamamos Morte.

O vento tangendo pensamentos.

O vento tangendo sentimentos.

O vento tangendo resquícios de um sonho incompreensível.

Na casa de um amigo de infância.

Meu único amigo ali era a casa.

Cheia de rachaduras e infiltrações.

Como meu próprio corpo desabando no corpo do abismo.

Tempo trabalha na longa longa duração.

O sol, a lua e as estrelas giram.

Lari reza e pinga o colírio.

Lavo os olhos com mel.

Três vezes choro no túmulo de Ian.

Recordo tio Edson ao olhar as nuvens.

Gabi me ensina sobre o ódio e sobre a necessidade de estar aqui.

Ainda que aqui seja uma casa cheia de rachaduras e infiltrações.

É a única que tenho. É o corpo que sou. É o lugar onde habito.

E a estrela que me habita ainda não morreu.

E a lua que me habita ainda possui suficiente ternura.

E o sol que me habita lança serpentes de fogo 

que acendem a pedra delicada onde repousa minha dor...


nuno g.

Toróró, 22/02/24.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Içá

Isso é um içá!?

Sim - e lembrei do sítio do pica-pau amarelo entre as cidades mortas.

Hoje caíram tanajuras, não chove - me disse uma velha na fisioterapia; choveu.

Sonhei com a montanha mais alta do mundo.

Só a morte e os vaga-lumes sobreviviam ali.

Quando eu era menina catava içás para minha vó fazer farofa - mas eu não comia.

Depois que a velha falou, uma jovem comentou o mesmo, mas havia nojo em sua voz.

De tudo que Bruno me falou retive a imagem poética do guerreiro que corta o ar com sua espada.

A inutilidade do gesto o torna ainda mais poético.

Em tudo que Gabi me falou havia uma certa sabedoria prática e um amor ao outro que me é estranho.

Impossível não recordar São Francisco de Assis.

Ou certo saber que nos diz que amadurecer é se deixar de lado.

Que gosto terá bunda de tanajura?

No alto dessa montanha do sonho havia um descampado inabitável.

Só a morte e os vaga-lumes se faziam presentes.

Os infortúnios do corpo e da alma são mensageiros de algo.

Só o difícil interessa. Só o amargo desmemoriza.

As coisas que eu gostaria de esquecer nunca serão esquecidas.

Encontro Don Juan onde menos espero.

Em um livro de psicanálise sobre a solidão.

A voz de Lucas invade minha sala com um convite.

As coisas que recordo agora não são da ordem do que pode ser dito.

Alice está longe e está próxima.

Havia nenhuma outra luz na montanha além da dos vaga-lumes.

Lari volta a sangrar. 

Será que as mulheres são ainda mais fascinantes por sangrarem sem morrer?

Thiago de Mello: faz escuro, mas eu sonho.

E sonhar é uma benção.

Ainda quando se perdeu toda uma infância entre pesadelos.

O que eu não terminei de te contar Gabi é que sim houve um tempo em que eu temia a morte.

Temia tanto que evitava dormir, pois todas as noites ela me perseguia em sonhos terríveis.

Isso durou anos - bem mais de uma década.

E nisso vi escoar pelo ralo um tempo precioso da vida.

Depois perdi o medo e, junto com ele, perdi também o amor a esse mundo aqui.

No deserto entendi que os derrotados são sempre os que temem a morte.

Meu avô me repetia algumas coisas todos os dias.

Que ele morreria antes de mim e que eu deveria enterrá-lo e seguir.

Que ele gostaria que isso ocorresse depois dos meus quinze anos.

Que não seria natural ele presenciar minha morte pois isso seria uma perversão da lei natural.

O hálito de álcool não turvava suas palavras.

Nem tudo ocorreu como ele gostaria.

Minha infância terminou quando ele morreu.

Minha solidão é sagrada - e todas as vezes que desacreditei nisso me fodi.

A imagem que retive das falas do Bruno se desdobra à minha frente.

Um guerreiro irado corta o ar com a lâmina afiada de sua espada.

O gesto é ainda mais poético por ser de todo inútil. 

O vaticínio da velha estava errado, choveu.

As bundas das tanajuras sabem à proteína pura.

Aquela montanha mais alta do mundo é o México onde está enterrado a placenta de Alice.

Só a morte e os vaga-lumes parecem ter força de chegar lá outra vez.

Desde o nascimento de Assucena duvido de minha carcaça.

A dor me tirou da estrada. E essa dor se alojou em minha alma.

Sempre fui triste e a alegria sempre me pareceu fútil.

Hoje gostaria de ouvir apenas o silêncio.

A voz da morte. A chuva de tanajuras.

E a melancolica e frágil luminosidade dos vaga-lumes.


nuno g.

Toróró, 21 de fevereiro de 2024.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Quaresma.

A lua amarela em quarto-crescente e as primeiras moscas.

Coração é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Nas nuvens se avistam formas de animais.

Uma tartaruga.

Um capote.

Um urso.

Um galo.

Um avião da panair.

Ouço Mãe Hilda me chamar - é só o resquício do sonho.

Empatamos o derby no último minuto.

Chove. Chove. Chove.

Quatro da manhã, o segurança do Hercílio Luz me escolta:

Onde é que fica a Azul?

Aponta com cara feia e amarrada a fila do check-in.

Na revisão do raio-x a máquina apita uma vez.

Tiro as moedas do bolso.

A máquina apita uma segunda vez.

Tiro mais moedas do bolso.

A máquina apita uma terceira vez.

Tiro a carteira e o cinto.

A máquina não apita.

O que é isso?

Um salame.

Posso conferir?

Sim.

Você pode, por favor, abrir?

Pode abrir você, mas não come.

Saí com um salame desembalado e o cinto quebrado.

Empatamos o derby no último minuto.

Em Belo Horizonte muita neblina atrasa a aterrisagem.

Em Belo Horizonte muita neblina atrasa a decolagem.

Meus ouvidos quase estouram quando chegamos no aeroporto 2 de julho.

Trago a medalha de Gaeth no bolso e uma febre desconhecida.

A raiz e as folhas guardam o silêncio e a guerra.

Todas as árvores guardam suas próprias feridas.

Saudade é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Na febre se vê coisas que se assemelham à coisas.

Me falta permissão para prosseguir.

Me falta permissão para dizer a história dos nãos.

Me falta permissão.

Empatamos o derby no último minuto.

Lua amarela e chuva.

Meus ouvidos prestes a explodir.

Francine envia à Alice foto do parto de uma gata.

Lari me envia uma foto minha com Assucena na janela da casa do Almirante.

Uma febre me engole e mergulha meu corpo num estranho estado de dispersão.

Não fui à Valença, necessitava dormir.

Talvez hoje eu peça. Talvez hoje eu obtenha. Talvez.

Morte é o nome de uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Silêncio, resguardo, concentração.

Talvez um dia eu tenha a permissão para contar a história dos nãos.

Do circo. Do aniversário. Dos passeios de barco. Dos churrascos.

O inferno das crianças são os adultos.

Sobrevivi a três aeroportos e à história dos nãos.

Com a pedra no peito e a espada no coração.

Assistimos a luneta do tempo com a exuberante Hermila Guedes.

O inferno das crianças são os adultos.

Silêncio é uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Tempo.

Sobrevivi a muitos assassinatos, 47 quaresmas e rios de areias movediças.

O piratinha me aguardava no meio do bambuzal.

Dei na chave e acelerei.

Comprei bolo de laranja e pães em Santo Amaro.

Mergulhado na febre fui sorrindo pela estrada.

Como se o meu corpo fosse estranho à minha consciência.

Os ouvidos completamente tapados.

Os tendões inteiramente inflamados.

A memória do ódio. A memória dos nãos. A desmemória do mundo.

Vagamente recordo de Gaeth comentar sobre os voos da  lufthansa.

Outra vez o avião da panair cruza as nuvens da minha poesia.

Num sonho muito antigo quase me tornei minha mãe e meu pai.

Num sonho muito antigo escutei alguém me chamar.

Num sonho muito antigo tudo era água, fogo e sangue.

Recolho as moedas da bandeja do raio-x do aeroporto.

Faço do xale que Gaeth me emprestou um cinto e sigo.

Amor, faz um cuscuz com ovo, você que é o nordestino.

A ânsia de desejar e o tédio de possuir, livremente adaptado de Arthur Schopenhauer...

Borboletas amarelas. Flores amarelas. Incerta desolação.

Já botei o cuscuz.

Já desço pra fazer os ovos.

A ausência de Alice aqui.

A lembrança de Bruno Tolentino exaltando Cruz & Sousa.

A lembrança de Bruno Tolentino denunciando a mediocridade de Ana Cristina Cesar.

A lembrança de Bruno Tolentino preso por porte de cocaína escrevendo suas baladas.

Vem comer com a gente?

Claro!

Assucena ergue a cabeça buscando a irmã.

Assucena ergue a cabeça e encontra a ausência da irmã.

A lua é uma árvore que cresce ao lado da árvore chamada Lua.

Minha sombra está suficientemente acostumada a devastações.

Nas nuvens vejo apenas recordações de animais que o vento dissipou.

O cheiro do cuscuz sobe as escadas.

A chuva para.

Um dia conto a história dos nãos que me perseguem.

O inferno das crianças são os adultos.

No coração da lua enterrei os primeiros dias da quaresma.

Com suas moscas e suas exigências de jejuns.

O vizinho aumenta o volume do reggae.

A voz de Edson Gomes se espraia sobre o vale.

No livro da morte está a história do samurai negro que conversava com deus.

No livro da morte está a história dos nãos que não tenho permissão para narrar.

Nas paredes do apartamento 102 do edifício Grão-Pará minhas jovens mãos escreveram um dia:

escrevo como os prisioneiros que escrevem nas paredes com sangue e fezes...

Aquele apartamento não existe mais.

Aquele edifício não existe mais.

Aquelas jovens mãos não existem mais.

Somente as baladas sobre a aprendizagem da solidão seguem existindo.

Era uma vez um castelo, um poeta e uma bailarina.

Era uma vez...


Alice levou a lua amarela e o cheiro de Assucena.

Tempo é uma árvore que cresce no coração azul do Mundo.



nuno g.

Toróró, 18 de fevereiro de 2024.



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

domingo de carnaval.

sonhei com uma gig hardcore

os gatos bagunçaram a casa

armamos a rede-berço, finalmente

Sofia não veio, como se esperava

Lari cozinhou comida árabe

Saci mandou fotos de carnaval

motos barulhentas cruzaram o silêncio do Toróró

todos os jornais falando da folia

se catam como piolhos notícias sobre o fascismo nos jornais

se catam como piolhos notícias sobre o fascismo nos jornais

o inominável ainda tenta usar seus crimes para se promover

os sionistas seguem matando crianças sob o silêncio do mundo

sonhei com uma gig hardcore

tempos em que ser jovem era estar no mundo de uma maneira diferente

encontramos Jarbas na 25: me contaram que você ama Nico!

sonhei com o tempo em que ser jovem era ouvir Lou Reed e Patti Smith

entre as plumas e paetês das festas de Momo

fascistas brasileiros fascistas argentinos fascistas israelistas

escorrem como piolhos gordos de sangue humano

Gabi sonhou com um senhor baixinho que tinha 80 anos e aparência de 44

alguns dos sonhos de Gabi me recordam Don Juan

sonhei com o tempo em que ser jovem era ler Don Juan e sonhar com peyote e desertos

sonhei com o tempo em que ser jovem era cultuar Maria Sabina

ser jovem e aparentar feições de velho

ser velho e aparentar feições de jovem

lições primeiras de feitiçaria

mirações sobre a verdadeira natureza de Tempo

todos os enigmas são ilusões dos olhos de quem vê

Assucena despertou - o som do processador fazendo o faláfel

Alice lê Peter Pan

quando elas crescerem existirá algo como uma boa e velha gig punk?

a janela bate, o vento do leste sopra, 

o rio amarronzado pela chuva corre em direção contrária ao mar

os sonhos de Gabi são como um oráculo

dizem para não dizer e ao desvelar encobrem

Alice brinca com Assucena, ela sorri

Sofia não chega, como se esperava

Ignez manda mensagens telepáticas

quando eu era criança eu era muito velho

tão velho quanto meu avô

e agora, quase-a-envelhecer, aflora essa juventude

esses sonhos com uma eterna gig hardcore

e as lembranças das peripécias de Don Juan pelo deserto de Sonora

selvagem é uma das mais lindas palavras do dicionário

e está em extinção

assim como fúria, liberdade e sabedoria

olho Alice

olho Assucena

alguma esperança que nem tudo foi em vão

alguma esperança que ainda haverá fúria, sabedoria e liberdade no futuro

alguma esperança que uma nova juventude rasgará as velhas roupas coloridas

no sonho de Gabi havia uma padaria, uma prisão, maconha e óleo de hortelã

e todas as repressões saltando como rãs num pântano

no sonho de Gabi havia uma promessa

que me fez sonhar novamente com uma eterna gig hardcore

onde a palavra diferença deixava de ser um sobterfúgio à má consciência da opressão

fúrialiberdade sabedoria - sem fascistas no caminho

pai, eu me lembro quando essa boneca caiu do sofá e eu botei um band-aid

pai, a sussu enfiou a cabeça dela entre os dois travesseiros...

espero que minhas filhas também sonhem algum dia com algo parecido às gigs punks

espero que espadas, piratas e castelos façam parte de ser jovem

Lou Reed, Nico, Iggy Pop, Lemmy, Patti Smith,

aquele distante encontro com Luiz Carlos Porto na casa do Henrique Didimo

Ave sangria, as motos rasgam o silêncio do Toróró

Alice embala Assucena na rede-berço

o cheiro da comida árabe sobe a escada

meu braço dói, escrevo escrevo escrevo

e sonho que essas escrituras encontrem lugar no coração da juventude

os gatos bagunçaram a casa

estar só é estar com a multidão silenciada

pai, o nome desse boneco no desenho não era Jarbas,

mas você disse que ele tinha cara de Jarbas e o nome dele ficou Jarbas

sonhei com uma gig punk

e acordei esperançoso de que haverá algo assim quando a juventude tornar a ser jovem

no sonho de Gabi havia um casamento e uma prisão

e havia um senhor baixinho que conhecia os poderes das ervas

e sabia provocar ilusões visuais

ele também estava na gig do meu sonho

assim como o mar verde da Majorlândia de minha juventude

quando eu era tão velho quanto qualquer ancião de oitenta anos...

(...)

pai, essa boneca nunca teve nome...


nuno g.

Toróró, 12 de fevereiro de 2024.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Alzira

Você só tem a si mesmo, à sua dor, à sua fé, à sua morte.

Comida mediterrânea, azeite doce.

O azeite doce está tão caro quanto o ouro!

Adélia. Adélia. Adélia.

Onde está seu coração está também o coração da poesia.

Rua Ceará, Divinópolis, Minas Gerais.

Milton.

Onde está sua voz está também a voz de Deus.

Alice brinca com Sofia, sábado de carnaval.

Assucena dorme.

Hermenegildo, Hermenegildo...

Onde está sua montaria está também a flecha do Sonho.

Vejo o galo da madrugada na televisão.

Os alfaces hoje estão todos ruins.

Chove. Sopra um vento. 

Certos dias sabem a sal e à sede.

Os pássaros descem o rio, maré mais baixa que ontem.

A pregabalina atenua os incômodos da tenossinovite.

Uma estrela rasga o vazio do céu.

Lua nova.

A dor, a fé e a morte.

E a coragem de ir buscar no mais fundo das águas algum horizonte.

Lua nova.

Era uma vez uma ilha...


nuno g.

Toróró, 10/02/24.

Edberto Gonçalves

Gosto igualmente de todos os seus primos, mas eles têm seus pais e suas mães.

Você só tem a mim e à minha morte.

Você só tem à sua vó e à sua morte.

Você só tem essas lágrimas de sangue e sal aprisionadas nos seus olhos.

             * * *

Alice ganhou sua primeira guia.

Assucena olhou olhou olhou.

Arriamos flores, alfazema e amor.

De madrugada choveu.

               * * *

Você só tem a si mesmo e à sua morte.


nuno g.

Toróró, 05 de fevereiro de 2024.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Reencarnação III

Artrose precoce.

Gabriel vaticinou: Assucena e os cães, banda punk.

Assucena e os cães românticos!

O cantador das cousas do porão e seu canto torto feito faca cortando a carne do amanhecer.

Vamos almoçar o quê?

Pode escolher, 

Qualquer prato de qualquer país do mundo que eu busco os ingredientes no fundo do mar.

Artrose precoce. Tendinite. Fé.

O peso do mundo sobre o meu ombro.

O peso do mundo sobre a minha cabeça.

A poesia e essa vaga memória das cousas que não vivi.

A voz de Cristian ao telefone.

A voz de Zaine ao telefone.

O sonho do Recife. O elevador dos funcionários. A esquina.

Os insuportáveis vizinhos da praia de Boa Viagem.

A estranha recordação de quando eu tinha apenas seis meses na praia de Piedade.

Os cães românticos e o horizonte...

Reencarnação II

para bia,


Uma xícara de café amargo e vaga lembrança de tia Helma.

Mucuripe à voz do cantador das cousas do porão.

Seus cabelos loiros em Olinda e suas palavras e todas as suspeitas pulsando em meu coração.

Dona Antonia regressou dos exames e alçou a bandeira branca no terreiro.

O pé de seu Antonio segue cicatrizando devagarzinho.

Cobra de olho de vidro e escamas coloridas.

Val plantando feijão. Nato brincando com Assucena.

Alice lendo poemas sobre sorvetes e decepções.

Teu pai tá doido!

Doido nasci, sou.

Quarta-feira, de hoje a oito cinzas.

Quarta-feira, ventanias ciganas e fogos da justiça.

As vésperas me comovem e me reviram por dentro.

Uma xícara de café, uma gata no cio, nuvens tangendo fevereiro.

Ignez não foi às classes.

Vi uma foto de Bia com Inaê ao colo.

Senti saudade imensa e vontade de estar junto um segundo.

Ela também está envelhecendo!

Tem só três anos a menos que eu...

Luís desce a ladeira da casa do Almirante.

Vento e fogo / fogo e vento.

A primeira oferenda a Tempo, a última também.

Bel lava as louças e seu Elias caminha em direção ao infinito.

O rio nos olha, maré baixa, ilhas expostas como esqueletos de um lagarto sem plumas.

Rinoceronte norte-coreano cruzando a estrada.

Serpente de olhos de vidro e coloridas escamas.

Vi uma foto de Inaê no colo de Bia.

Senti imensa saudade e vontade de estar junto um minuto.

Ela está envelhecendo.

Dois filhos, professora dedicada e muita vida escorrendo entre os cabelos...

Reencarnação.

Alice e Ignez descobriram que são peruanas.

Irmãs separadas no berço.

Assucena sonha enquanto Jonas, a lagartixa, rumina desacontecimentos.

Sonhei com Recife mais uma vez.

Elevador dos anti-sociais, vizinhos bêbados e uma socialite insuportável.

Esquina do Nada com o Nada.

Lari sonhando com a força do parto, com a força do sexo, com a força do amor.

Vozão estreiou com vitória na copa nossa.

Papai, nas próximas encarnações quero ser:

Gato da Francine.

Cachorro do tio Claudio.

Vaca na Índia.

O carnaval está chegando e nada recorda isso.

Alice e Ignez descobriram que Santiago é colombiano.

Mas que não está preparado para saber.

Os homens tardam mais, se demoram, divagam.

Os primeiros quarenta anos são somente para abrir os olhos.

Alice sonha.

A hora da terapia de Lari se aproxima como Jonas se aproxima da cumeeira da casa.

Filha, em alguma reencarnação passada fui um indío tapuia no vale do Jaguaribe.

Vi os colonizadores chegarem.

Estive quando da traição e das emboscadas.

Recordo a cabeça de touro enterrada sob a igreja da Virgem na cidade do Icó.

Papai, você tem mesmo esses olhinhos indígenas...

Entrou um espinho de jurema no meu calcanhar.

Alice improvisou uma pinça com duas facas e o extraiu.

Assucena sonha.

E Hermenegildo nos sorri da estrada.


nuno g.

Toróró, 07 de fevereiro de 2024.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Promessa.

para Lari y as Marias,


Aqui não é Macondo.

Aqui não é Comala.

Aqui tudo é sonho, ossos e pressentimento.

Aqui tudo se torna água e rio.

Aqui tudo é pedra e memória da pedra e do fogo.

Aqui o amor reina soberano e canta e dança.

Aqui tudo é cura e perdão.

Aqui o esquecimento não encontra chão.

Aqui tudo é Luz e a sombra das sombras encontra seu caminho.

Aqui todas as cicatrizes ganham formas belas.

Aqui o pesado se dissolve e as nuvens brilham e cintilam e se transfiguram em saber.

Aqui a morte nos abraça como uma velha amiga.

Aqui os deuses se encontram e celebram à maneira antiga.

Com seus vinhos, seus mistérios e seus oráculos.

Aqui toda a maldade é varrida pelos ventos.

Aqui a beleza reina soberana e canta e dança.

Aqui ofertamos milho branco, inhame e mel.

Aqui reverenciamos nossos ancestrais.

Aqui os perdoamos e com eles comemos com as mãos.

Aqui Tempo reina e suas árvores crescem e dão frutos.

Aqui não existe chão para o esquecimento.

Aqui tudo é cura e perdão.

Aqui o desespero se encontra com seu caminho e o labirinto deixa de existir.

Aqui é Luz, sonho, ossos e a imensa imaginação das ruínas.

Aqui é casa e terra firme.

Aqui tudo é despertar e amor e amor e amor e ternura.


nuno g.

Toróró, 02 de fevereiro de 2024.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Adélia.

Lua minguante no céu.

Alice e Ignez brincando.

Assucena dorme.

Tão difícil fazer versos, mas eu sonho.

Além dos nossos gatos os dos vizinhos.

Que vão ganhando nomes também.

Salem, Romeu...

Quando digo minha asa está ferida a tenossinovite quase faz sentido.

Palavra assentada na pedra - e vou caminhando no labirinto de Larissa.

Lua minguante no céu.

Larissa dorme.

Amanhã Assucena toma vacina de meningite.

O pé de seu Antonio vai melhorando devagarzinho.

Doutor Epitácio quer ver mais um exame antes de dizer sua palavra.

Domingo tem festa.

Barcos e flores na pedra da Baleia.

Palavra assentada em pedra submersa.

Tão difícil fazer versos, mas eu sonho.

Rio de maré, deuses que dançam, memória das serpentes.

Do Rosarinho ao Toróró as coisas sedimentando por dentro.

Abismo em forma de cidade.

Outro dia sonhei que aqui era o Crato e que Cachoeira ficava na Chapada do Araripe.

Tudo era bonito e perigoso.

E caíamos e caíamos e caíamos.

Até no sonho minha asa esquerda dói.

Acordo, escrevo e já estamos em fevereiro.

Mês em que Alice volta a viajar.

Terá carnaval para quem é de carnaval.

Meu vizinho me fala de Paracuru.

À oeste do meu coração sopra um vento frio.

Lua minguante no céu.

Adélia, me ensina a escrever como tu!

Hermenegildo, reza minha dor!

Hilda, mãe, abençoa minhas crias.

Luto é palavra que guarda ternura.

Casamento soa perfumado, bonito e perigoso.

Quase como amor, passarinho e praia de rio.

Em março as aulas voltam.

Em março Alice viaja de volta.

Hoje jantamos acarajé.

Olhei as estrelas - Bilac nunca esteve entre os que me atravessam.

Cozinhamos ossos de boi e pés de galinha para os cães.

E o feiticeiro nos acenou de longe.


nuno g.

Toróró, 01 de fevereiro de 2024.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Ode a Hermenegildo

 à memória de Augusto dos Anjos,


Pina, a gata, arranha a casca da jurema preta.

Um barco sobe o Paraguassú com filhos-de-santo saudando com palmas as águas.

A tempestade se foi, não se ouvem mais os trovões.

Embora as nuvens sigam reinando nos céus.

Seu Antonio feriu o pé com espinho de roseira.

Uma voz distante nos abraça e promete alguma ternura antes dos dias de folia.

Um vento suave vem do Himalaia e leva algumas pesadas formas-pensamentos.

Mistérios Sussuarânicos, pássaros de Hermenegildo com metais no bico.

Pássaros de Hermenegildo com minerais no bico.

Uma canção na voz Gaeth soprando paz e paz e ternura e paz e fécula de alimentos e paz.

As Marias se conversam.

Alice traça uma genealogia sem-fim com Clarice.

Como se cem anos de solidão não fosse mesmo suficiente.

Assucena sorri e seu sorriso me fala do trabalho de todos os seres que a trouxeram até aqui.

Larissa sonha com a força pura e potente do parto.

Larissa sonha com o mais intenso e cintilante do parto.

Larissa sonha e em seu sonho o próprio parto está se parindo.

O gavião do Montecristo nos visita.

Um vento suave do Himalaia o traz até aqui.

Que nunca falte mel em meus olhos.

E que quando a tempestade voltar eu ainda esteja aqui.

Eu, Hermenegildo e seu estranho cavalo com asas de rinoceronte norte-coreano.


nuno g.

Toróró, 28 de janeiro de 2024.


 

sábado, 27 de janeiro de 2024

hino à poesia II

 à memória de José Alcides Pinto,


Anônimo, o gato, descansa protegido da chuva à sombra do limoeiro.

Flutuo sobre a loucura e o delírio de gerações e gerações de psicanalistas.

Flutuo sobre o cinismo, a ironia e a descrença contemporânea.

Invoco espadas antigas, amuletos perdidos, orações em línguas desconhecidas.

Flutuo sobre as visões desnorteadas dos medos imaginários.

Sobre o mar de ruínas e destroços.

Sobre o sangue das civilizações antigas e suas bibliotecas desaparecidas.

Flutou sobre a dor, a solidão e as cicatrizes do abandono.

Invoco Fúrias, Musas e outros seres de outros mundos.

Invoco a Estrada e seus tentáculos de Sabedoria.

Garfield, o gato, descansa protegido da chuva no tapete rosa da sala.

Invoco minhas próprias forças desconhecidas.

Para que semeiem uma nova paz e uma nova lucidez e uma nova utopia.

Flutuo sobre o fim do mundo.

Sobre os vestígios do fim do mundo.

Sobre as galáxias em gestação enquanto esse mundo desaparece.

Invoco alfarrábios, fragmentos de estrelas e luzes subterrâneas.

Estudo novamente as cores e os signos.

O uivo de Allen Ginsberg e a inteligência descomunal borrifada por Kerouac.

Retomo minhas anotações sobre minha própria estadia no inferno.

E vou movendo meu corpo apodrecido entre as águas vaporosas do Jorro.

Reaprendo com os pássaros a me alimentar de sementes.

Invoco o Sol. Invoco a Claridade que desfaz os gestos das sombras fantasmagóricas.

Invoco o Anjo que me acompanha desde o berço.

Escuto a Voz de minhas filhas escorrendo entre as frestas de minha desértica imaginação.

Escuto a Voz das cem mães que tive nesta encarnação.

Escuto o berro bravo de meu pai.

Acaricio cada ferida sua.

Extraio de seu corpo as balas que o levaram para longe.

Ouço o vento do Infinito. Ouço Aracati. Ouço as Onças.

Invoco Tempo. Rogo paciência.

E adormeço como se nunca nada houvesse ocorrido.

Como se a máscara de gelo e fogo fosse apenas uma forma do pensamento.

E torno a flutuar sobre os gatos e suas esperanças.

Sobre a chuva e seus segredos.

Sobre os temores e suas iras.

Invoco ao que traz o poder de dissolver o corpo velho e restituir a saúde.

Escuto a Voz de minhas filhas e adormeço quase em paz.

Como um planeta ilusionado pela abrupta sensação de ter reencontrado sua órbita originária...


nuno g.

Toróró, 27 de janeiro de 2024


hino à poesia.

à memória de José Alcides Pinto,


Sou feito de Sonho e Solidão.

Minhas vestes são as águas das chuvas.

E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.

Nada em mim recorda as cinzas do esquecimento.

Tudo é noite e escuridão no manto azul estrelado com que teço minha pele.

Sou o Sol de mim mesmo que se estende desde as várzeas sertanejas às praias coloniais.

Sou feito de Promessas e Horizontes.

Minha nudez é a do deserto do altiplano andino e das mesetas mexicas.

Quando meus olhos encontraram os olhos de Mama-Quilla na fortaleza inexpugnável de Sacsayahuaman.

Quando Wiracocha criou com barro e amor o Sol a Lua e as Estrelas.

Quando os primeiros sacrilégios feriram a crosta da Terra e dos Oceanos.

E os fervores tóxicos do ódio escaparam das entranhas do Mundo.

Minha nudez se revelou em toda sua fragilidade de ossos em precoce envelhecimento.

Sou feito de Fé e Esperança.

Tudo em mim é tremor. Sou o Grande Cenote onde Walt Whitman recebeu seu corpo-revelação.

Sou a Morte, a Doença e a Cura.

Os movimentos do abismo insondável e as ruínas da civilização do Caldeirão e Canudos.

Sou feito de Sonho e Solidão.

Sob as visões da Ayahuasca da Codeína do Ópio e da Morfina.

Vi meus joelhos sangrando de tanto chão.

E os meus mortos peregrinando em louvor ao Padre Cícero e à Virgem de Guadalupe.

Vi meus dedos se esticando como caudas de seres pré-históricos.

Vi a Virgem da Conceição semeando Luz nas águas doces do Jaguaribe e do Amazonas.

Sou feito de Lírios Brancos e Papoulas Brilhantes.

Sou o Sono que antecede a Eternidade.

Sou o Nada e a imensa vastidão que nos separa de nossa própria Consciência.

Minhas vestes são as pedras que caíram dos céus.

E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.

Nada em mim recorda o cinzento esquecimento.

Tudo é Azul, Noite e Escuridão.

Tudo é um só e único manto estrelado que nos cobre a cegueira e o desespero e a insanidade.

Sou feito de Sonho, Silêncio e Solidão.

E da poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes...


nuno g.

Toróró, 27 de janeiro de 2024.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Jacinta.

Nomeei minha dor: Jacinta.

No meio de uma trovoada.

Ausências voando entre as gotas d'água.

Beija-flores se refugiando nos cabelos das Marias.

Batizei minha dor: Jacinta.

E dois homens vestidos de branco chegaram.

Fizeram coisas que tinham a fazer.

O mais velho, cabelos e barba grisalhos, guiava a limpeza.

O mais jovem, imberbe, executava e aprendia.

Não levantei da cama.

Observei.

*   *   *

Papai, prefiro lembrar dele vivo.

Papai, a Magui e o Bené devem estar sofrendo.

Chorou, me abraçou e foi brincar com a Ignez.

Papai, ele era muito legal.

Papai, você gostava muito dele.

Sorriu e foi brincar com a Ignez.

Sim filha, foi ele que foi me buscar no Recife quando sua vó suicidou.

Sim filha, foi ele que foi buscar o corpo de sua vó no Recife quando ela virou lua.

Sim filha, foi ele que do púlpito da igreja matriz de Russas deu voz à minha dor quando seu bisavô morreu.

Sim filha, foi ele que me mostrou tantos livros quando eu ainda buscava nos livros o que a vida não podia me dar.

Sim filha, foi ele que leu em voz alta para mim o "poema em linha reta" que me fez amar meu destino torto.

Sim filha, foi ele que me disse as palavras mais sinceras quando defendi a tese de doutorado que escrevi com você no colo.

Sim filha, a chegada dele era todos os anos um acontecimento.

*   *   *

Os homens vestidos de branco partiram.

Papai, eu te amo.

A trovoada seguiu.

Jacinta aqui - se não me mata te escrevo.

Assucena me chama. Os analgésicos finalmente fizeram algum efeito.

As águas lavam tudo, menos as mentiras que assassinaram minha infância.


nuno g.

Toróró, 26 de janeiro de 2024.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Alzira

para minhas mães da terra,

para Eliana, minha mãe do Astral,


Acenderam três velas minhas mãos trêmulas.

Na primeira, a intenção do Sol.

Na segunda, a intenção da Lua.

Na terceira, o parto de todas as estrelas.


Acenderam três chaves perdidas.

Na primeira, uma surra de cinto pelas trêmulas mãos de meu avô.

Na segunda, um labirinto antigo onde se perdem todos os futuros.

Na terceira, a cegueira a cegueira e a cegueira.


Acenderam todas minhas fraquezas as mãos súbitas do Mensageiro.

Meus medos mais arcaicos, mais sutis e mais imaginários.

E nesta floresta onde estão plantadas as portas do Monastério das Flores Selvagens.

A memória de Alzira se fez fogo e saber sobre a Tempestade.


nuno g.

Toróró, 11/01/24.

Hermenegildo

 para Adriano Brito,


O dia amanheceu nublado,

O dia amanheceu em paz.

Maria me fez um carinho e me disse:

papai, amanhecer e paz são a mesma coisa.

Hermenegildo me soprou:

Eu venho de longe, você também.

A dor da tendinite e a dor da guerra são linhas do mesmo arco.

Eis a flecha, aqui.

Na hora em que chegaram a pedra e seu Senhor cantavam a Inaê.

A dor e a guerra se mesclavam como a água e a água.

Dona Eliana, com sua face renovada em mel, esteve aqui uma vez mais.

Choveu pipocas e recordei antigos sonhos.

Ian, meu pequeno, descansa em paz.

As águas do Jaguaribe levando o espírito de Dellany.

Saudades de Adélia. Saudades de Judite. Saudades de não sentir dor.

Minha energia vital decantando na quartinha.

A dor e a guerra se estendendo pelo tendão inflamado.

Maria me fazendo carinho e me dizendo.

Papai, daqui a pouco você estará curado.

Recordando aqueles sonhos em que os degraus da escada desmanchavam como sorvete ao sol.

Recordando aqueles sonhos em que a ponte se dissolvia como a luz das estrelas no espaço.

Me afastando de mim, da dor, da guerra e das memórias de minha pele.

O ferreiro. O caçador. A senhora dos ventos.

E brilhando acima de todos nós a Senhora da Lama Roxa.

A faceira de luto. O rosarinho de luto.

E a memória da guerra contra os tapuias no vale das onças.

E a memória da guerra contra os palestinos em Gaza.

E a memória dos fascistas invadindo Brasília e os meus sonhos.

Reconhecer na dor uma mestra, difícil e árdua tarefa.

Hermenegildo entre as nuvens.

Essa ponte que somos entre um sonho e outro.

Entre um corpo e outro.

Entre uma morte e um nascimento.

Maria foi dormir na casa de Ignez.

Me fez um carinho e me disse:

Papai, estou com piolhos outra vez.

Rego Assucena esperando a flor.

Não há ainda arco-íris no céu, não é seu tempo ainda.

Suo. Tremo. Balanço.

Bruno me fala do amor divino.

Adriano me canta o amor divino.

Os gatos traquinam pela casa.

A dor me leva à exaustão, uma vida inteira andando descalço pela fronteira.

Hermenegildo se despede, passarinho que é, avoa.

Hermenegildo se despede, peixinho que é, nada.

Assucena dorme. Maria se faz estrela e brilha.

A dor no meu ombro se espalha pelo meu tendão.

A guerra de Tempo se alastra pelo meu agora.

Sentado à Pedra espero.

As portas do Monastério das Flores Selvagens permanecem fechadas.


nuno g.

Toróró, 11 de janeiro de 2024.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal, 2023.

para tio Edson, Bruno e todos os teólogos da libertação,


Os nazi-sionistas bombardeiam Belém.

O mundo celebra o nascimento do Palestino.

Aqui não faltou nada.

As crianças, os sorrisos, as comidas, o presépio e a Árvore do Mundo iluminada.

Os gatos também cearam.

Os cães também. 

Os pássaros cantaram.

Houve brinquedos, abraços, carinho e alegria.

Enquanto os nazi-sionistas bombardeavam Belém.

Enquanto os poetas de Gaza recitavam seus poemas de amor, firmeza e vida.

Enquanto os miseráveis da terra cumpriam sua condenação.

Aqui a lua quase-cheia brilhou no céu.

E nas dobras do seu brilho os gritos dos condenados da terra.

E nas dobras dos seus gritos o estrondo das bombas sobre Belém.

O Palestino segue sendo o mártir dos mártires.

Em seu sangue a promessa da redenção.

Aqui os estrondos foram os dos fogos pirotécnicos.

Em Gaza as bombas sobre hospitais, escolas, crianças e Marias.

Aqui comemos em abundância.

Sem esquecer a fome dos mutilados da Cisjordânia.

Os nazi-sionistas passarão.

A memória do Palestino não.

Os nazi-sionistas passarão.

Os poemas de Dom Pedro Casaldáliga não.

Maria Assucena sorriu, brincou e cansou.

Fez tanto xixi que uma lagoa se formou debaixo da rede.

Maria Alice sorriu, brincou e não cansou.

Trouxe tanta alegria que o rio, a Árvore e os olhos do Jaguar se encantaram.

Enquanto os nazi-sionistas seguiam bombardeando Belém.

Nunca a carne do mito foi tão presente.

O mundo-ocidente se esconde, se acovarda e silencia.

Enquanto os nazi-sionistas bombardeiam as crianças de Belém.

Sim, dezembro é o mês em que todas as feridas ardem mais.

Sim, dezembro é o mês em que a Estrela que guiou os Magos da Antiguidade volta a resplandecer.

Os nazi-sionistas passarão.

A Estrela, os Magos e a memória do Palestino não.


nuno g.

Toróró, 25 de dezembro de 2023.

domingo, 17 de dezembro de 2023

o joio e o trigo (súplica & agradecimento)

Sonhei com uma guerra infinita.

As sete espadas forjadas por um ferreiro africano.

E a voz e os dedos e o desespero implacável de meu avô.

Sonhei com a sabedoria dos bêbados e a cegueira dos assassinos.

Só em deus a luz translúcida.

Só em deus a pura escuridão amorfa e indefinida.

Aqui, tudo é rio e em todo rio a água se turva.

Se mistura a todos os líquidos e corre em direção ao mar.

A única exceção é essa cidade.

Onde o rio corre ao contrário e os sonhos nos possuem acordados.

Sonhei e entre o temor e a veneração depositei meus joelhos ao solo.

Curvei minha cabeça ante as nuvens.

E esperei o tempo da Serpente e da Árvore.

Anunciarei uma vez mais a promessa e o dilúvio.

Escrevi um palimpsesto breve.

Sobre coisas que nunca aconteceram.

Sobre livros de areia e garatujas indecifráveis.

Sonhei com uma guerra infinita.

Com o alcoolismo inevitável de verdades e espinhos.

Saltando sobre a saudade de meu avô.

Sonhei com lírios brancos acesos entre outras ervas.

E com cachoeiras anteriores a meu nascimento.

Amanhã será outra vez tempo de festa.

As sete flechas forjadas por um ferreiro africano.

Eram também os sete raios da anunciação.

Agora é tempo de descansar.

Lavar os pratos, cuidar da limpeza dos lençóis, cozinhar bem os alimentos.

Enquanto a Serpente e a Árvore vão movendo os sedimentos.

Abrindo túneis entre o Nada e o Nada.

Sob a terra, luz e escuridão se amalgamam.

E todos os rios na fervura de meu sangue.

Sonhei com os olhos em brasas do Jaguar.

Olhando a lua.

Olhando o rio.

Olhando o Trono forjado pelo ferreiro africano.

Amanhã será outra vez festa de Tempo.

Amanhecer de carnes e incensar de ossos.

O que é meu e o que é do mundo.

Unidos e separados.

Como o que é homem e o que é cavalo.

Nos centauros da Tessália.

O que é meu e o que é do mundo.

Nessa guerra sem trégua de sonhos e túmulos de azulejos azuis.

Nessa praia de gaviões onde avistei o horizonte.

Flechas, espadas e arcos coloridos.

No interior profundo da mata sombria trabalha um ferreiro africano.

E, aos seus pés, curvo minha cabeça em devoção.


nuno g.

Toróró, 17 de dezembro de 2023.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Hermenegildo.

Hermenegildo passou antes do sol nascer.

Sua silhueta a cavalo recortou a paisagem.

Me deu bom dia com voz de rio.

Hermenegildo, perfumado de alecrim e azeite.

Com seus olhos de facão e foice.

Abrindo o caminho de volta à terra arrasada.

*  *  *

Hermenegildo passou e o sol nasceu.

Sua voz de rio estancou ante meu amanhecer.

E com as ferramentas suas fui abrindo o caminho.

Hermenegildo me soprou um silêncio frio.

E me apontou com o olhar as três Marias ainda no céu.

Outra vez a hora de inventar um dialeto para bendizer.

*  *  *

Reza em mim que eu te perco da salvação.

Judite e Adélia cruzaram o caminho.

Alguém serviu um prato de comida aos deuses e outro aos cães.

A lua, minguante e terna, desapareceu atrás da serra.

Reza em mim que eu te salvo da perdição.

Sonhei com o sal, o mar, a sede e o corpo de Larissa.

Ela estava mais velha e eu ainda era um menino.

Nossas Marias haviam seguido viagem.

E nossos corpos celebravam todas as passagens.

*  *  *

Reza em mim e chove que essa seca já muito tarda.

Hermenegildo pronunciou o nome de Miguel sobre os maturis.

O rio está bonito hoje - na voz noturna de Larissa o tempo girou ao contrário.

Amanhã nossas Marias estarão juntas novamente.

Nas matas sombrias e no esverdeado coração das águas.

*  *  *

Suportar a dor extenuante.

Abraçar as brasas que não se extinguem.

Reza em mim e o sol se fará dicionário para a cura e para a morte.

*  *  *

Reza em mim e me rega com fogo.

Todas as estrelas no olhar de Hermenegildo.

Sonhei com Larissa coberta de sal e vestida de azul na praia do Montecristo.

Envelheci tanto que me tornei mais jovem do que o dia em que nasci.

O tempo se enrodilhou nos seus cabelos encaracolados.

Semeou serpentes e arco-íris entre eles.

E um vento de quarta-feira nos recordou nossas Marias.

*  *  *

Sentamos numa pedra.

Avistamos o Gavião.

Reza em mim e será como se me rezares eternamente.


nuno g.

Toróró, 13/12/2023.

domingo, 10 de dezembro de 2023

a dor que habito - canção de fim de ano.

Haverá um tempo em que tudo será diferente.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

Não haverá mais luto no coração da pedra.

E as nuvens poderão descarregar os sonhos que guardam.

Haverá um tempo em que todos os temores serão imaginários.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

E nós que aqui estamos não mais aqui estaremos.

Mas nossas sombras e nossas sedes e nossas fomes seguirão presentes.

Haverá um tempo em que tudo será distinto.

E a palavra encontrará seu próprio eco.

Assim como hoje o escuro encontra o escuro.

Haverá um tempo em que luz será uma metáfora gasta.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

Os raios abençoarão a terra.

Destruirão os castelos.

E as crianças se banharão nos rios outra vez.

Haverá um tempo em que os periódicos serão substituídos por poemas.

E que traduzir lágrimas será considerado algo honrado e honesto.

A justiça deixará de ser o que é agora.

E o conhecimento dará passagem à Sabedoria.

Velha senhora, amiga-irmã da morte.

E, de mãos dadas, as duas caminharão pela cidade vazia, esgotada.

Dezembro, às vezes, é o primeiro mês do ano.

Mas também é o tempo em que ardem com mais intensidade as feridas.

Haverá um tempo em que olhar para trás será mais que um mero exercício aeróbico.

E que o horizonte estará mais próximo do alcance de nossas línguas.

Haverá um tempo em que os sonhos nos guiarão pelo mundo.

Que o vento da tempestade varrerá com força nossa cegueira.

Nos sentaremos à mesa e comeremos o que nossas próprias mãos prepararam.

Haverá um tempo em que árvores e presépios tornarão a ter sentido.

E a Sabedoria, velha senhora, amiga-irmã da morte.

Vestida de roxo e de realidade.

Nos abraçará como se a dor nunca tivesse sido nossa primeira e única habitação.


nuno g.

Toróró, 10 de dezembro de 2023.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Agô!

para Lari,


O sangue dessa cidade sabe a dendê.

E sua cor é a da dor.

Aqui, muito se medita quando se sonha com machado ou fogo.

Eguns, ladeiras, ebós, encruzilhadas.

Aqui muito dói toda memória.

O sangue dessa cidade sabe à dor.

E sua cor é a do azeite.

Aqui, muito se medita quando se sonha com palha ou água.

O cheiro dessa cidade arde.

Orixás, Inquices, Voduns e Caboclos.

Aqui, muito se medita quando se sonha com serpente ou arco-íris.

Aqui muito se medita antes de esquecer.


nuno g.

descendo a Serra de Muritiba, 27 de novembro de 2023.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O sonho de Hermenegildo

Hermenegildo sonhou que era pássaro.

E, como todo pássaro, aprendeu o medo de quebrar a asa.


Quando o sol se põe Maria entristece, encabula.

Não pela noite que é, desde sempre, sua melhor amiga.

Mas pelo banho que se avizinha.

Ainda com os aromas dos chás, Maria não.

Hermenegildo sonhou que era beija-flor.

Botou o barco nas águas.

E voou.


nuno g.

Toróró, 27 de novembro de 2023.

sábado, 25 de novembro de 2023

Lonjuras.

Caminhamos até o Rio do Corte.

Nome bonito para dizer o lugar onde águas e navalhas se confundem.

Os tambores de São Luís e os atabaques da Rua da Feira no mesmo vento.

E o coração tão distante quanto disparado como uma segunda pele.

A luz à carne sonâmbula despertando.

Hermenegildo cruzando a montanha em chamas.

E os lábios pronunciando uma nova palavra.

Nome bonito para dizer o lugar onde morte e cura se confundem.

Adélia com seu vestido de missa e sábado.

E os dois cães rezando a Tempo e passagem.

Janeiro já chega com seu vento e seu rio.

E as onças dos sonhos sabendo à mais-realidade.

Árvores me começam.

Árvores me semeiam.

Árvores me devoram.

E vão me desensinando a ser humano.

A se libertar das folhas, das penas e dos primeiros grãos.

Judite cruzando a montanha em chamas.

Tempos de três sóis para cada ser.

Horizonte estreito, fenda na foz onde nasce a larva.

O som do choro de Maria antes de nascer.

A relva onde caminhará entre fogos e águas.

Serpente que é - à frente outra Maria.

Depois do fim do mundo ainda a incerteza sobre o que é o antes da lâmina ser rio ou navalha.

Os indíos todos aqui.

Dançando. Dançando. Dançando.

Como se as nuvens fossem uma bebida ofertada pelas divindades.

Hermenegildo, sempre ele, mergulhou nas águas (ou seria sangue?) do Rio do Corte.

E o sol nasceu por detrás do pasto da Maria Preta.


nuno g.

Toróró, 25 de novembro de 2023.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Atabaques.

Tardei, mas.

Me vieram as forças e a permissão de roçar as asas daquela noite.

A mulher ao meu lado razão e leite e perfume de.

Paisagem da janela na voz do Caçador de Si.

Todos os fogos explodindo à beira do rio que é todos os rios.

23 de novembro - nunca mais um dia qualquer.

Azia. Serenidade. Clamor de chuva.

Adélia, Hermenegildo e o inventário das coisas que sabem a pássaros.

Sobre sementes e árvores e baús onde se guardam artefatos explosivos.

Tardei, mas.

Eles eram muito mais antigos do que tudo o que até então chamei de antigo.

Eram arcaicos e enigmáticos.

Tremiam. Abraçavam com muita força. E nos fizeram leves.

Nos ensinaram o necessário.

Se desfazer das folhas, se desfazer das penas, se desfazer das máculas.

Tardei, mas.

Voltei a sentir o fio de prata me atar à terra.

De tão terra que eram soavam como nuvens.

Traziam a morte e a vida dentro. Traziam o Silêncio.

O Impronunciável.

Corpos-montanhas.

Já faz tempo, mas não esqueço.

Estão nessa razão e nesse leite da mulher que ao sofá amamenta agora.

Estão nessas árvores que crescem.

Estão em tudo que recorda esse 23 de novembro.

E dessa paisagem da janela aberta pela voz da onça verdadeira os vejo.

Os sinto. Os reverencio.

E a Eles rogo: razão, leite e afeto sem máculas.

Tardei, mas.

Voltei a sentir o fio de prata que me ata à terra.

E agora posso roçar de leve o que ocorreu naquela noite.

E, finalmente, ouvir a voz poderosa e sedutora da morte.


nuno g.

Toróró, 23 de novembro de 2023.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Anaeróbicos.

para Larissa & Gabriela,


Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Os povos que vivem na ausência de ar.

Que se reproduzem na ausência de ar.

Que se realizam na plena ausência de ar.

Difícilmente se revelam aos olhos dos povos de Ar.

Quase nunca se deixam ver pelos olhos dos povos de Fogo.

E nunca se permitem ser tocados pelos povos de Água.

Os anaeróbicos existem.

Como os arco-íris ou as plantas carnívoras.

E embora pareçam absurdos nada neles difere de tudo que existe.

Trazem a marca de estar aqui como todos.

Os afetos maculados.

A sombra do Karma.

A suspeita sobre o destino.

E a anomalia da memória que recorda coisas não-vividas.

Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Rio que corre em busca de um nome.

Vento que sopra em direção à sua própria origem.

Onça que quando canta redesenha todo o cosmos.

Os povos da Terra são os únicos com quem os anaeróbicos conversam.

E o conteúdo dessas conversas é de um sigilo vulcânico.

Usam palavras de larva em seus diálogos.

E quando se movem o fazem como se fossem placas tectônicas.

Dos nossos medos conservemos apenas os imaginários.

Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Sonhar com onças é sempre bom presságio.

Seja qual for a cor em que elas se apresentem.


nuno g.

Toróró, 22 de novembro de 2023.